terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sobre Walmor

WALMOR MARCELLINO: TRIBUTO DO DESCONHECIDO AO HERÓI



"Então, a história está cheio de impostores que vão levar essa mentira nas costas...Ficaram tão escondidos que se esconderam deles mesmos...Partiram para o romance...Meu amigo jornalista, desconfie da “palhaçada da esquerda”...Tá cheio de palhaço fingindo-se de herói até hoje!" – Walmor Marcellino



(Citado em entrevista concedida em 15 de outubro de 2007 a este jornalista)





Conheci Valmor Marcellino tarde demais. Mas no pouco tempo de amizade que tivemos (a qual cultivei como um tesouro), aprendi mais sobre política do que em toda minha militância partidária, práxis ou livros que li. Contestado por muitos, Valmor Marcellino não tinha “papas na língua”. Eu mesmo fui alvo de suas críticas - e orgulho-me de as ter recebido. A última observação que recebi dele, “an passant”, ali no Bar Stuart, foi a seguinte: “Esse menino está ficando um pouco mais inteligente”. Lembro que fiquei extremamente envaidecido com o quase elogio. Estas palavras - não chegou a saber, possivelmente, o meu amigo Walmor - serviram-me e vão continuar a servir-me de impulso a minha militância ao longo da vida. Receber um elogio ou um quase elogio de Walmor significou, para mim, algo não quantitativo. Isto porque alguns tem por prioridade na vida o seu sucesso financeiro, em trabalhar em algum grande órgão de comunicação entreguista, ocupar um cargo político, enfim, desfrutar do poder e do status que a vida possa lhe oferecer, usando para isto de todos os artifícios ortodoxos a que possam recorrer, entre os quais, esquecer da classe a que pertenceram por nascimento ou opção, abdicar da capacidade de exercer a crítica e perder a coerência são os mais usuais. A outros, porém - e não que isto não possa acontecer concomitantemente com aqueles outros objetivos, de forma nobre (o que me ensinou, o próprio Walmor, ser um acontecimento raro, pela própria natureza da lógica capitalista, ao elogio à loucura e a sociedade do espetáculo) - interessam como objetivo de vida, a construção pessoal, o apego ao conhecimento, à verdade, à elegância, à inteligência, à ideologia e à grandeza. Quando Walmor reconheceu em mim algum traço ou vestígio de algo que se possa chamar inteligência, a sensação que tive, traduzindo em linguagem acessível a este mundo medieval, foi a de ganhar uma medalha de um presidente da república; na vertente religiosa, ser abençoado pelo seu guru, o papa, ou um mestre. Sem culto à personalidade, mas constatação objetiva dos fatos, já que nos pretendemos, como socialistas, à construção coletiva.

Sou de um outra geração, mas tive o prazer de ler seus livros, assistir seus debates, conversar por inúmeras vezes, longamente, com ele. Entrevistei-o, em 2007 - para um livro que irá contar as memórias da esquerda paranaense - quando pude conhecer um pouco mais dos detalhes de sua vida e dos bastidores, e que bastidores, da história. Walmor sempre foi um revolucionário, e nunca deixou de estar devidamente entrincheirado nos fatos, o que pode ser um perigo para aqueles se escondem atrás das versões oficialistas. E toda vez que Marcellino falava, eu tinha o dever de ouvi-lo. Não me dava ao luxo de aparteá-lo (aparteá-lo com quais argumentos?). Agora, com a sua morte, chego à inevitável conclusão: mas afinal, quem sou eu, para falar sobre Valmor Marcellino? Sou, por acaso, como aqueles parentes distantes, que nunca nos visitaram e que nos vem assistir em nossa derradeira atuação no palco da vida, por uma mera obrigação formal? Claro que não. Sou uma amigo novo, que chegou atrasado na história, mas que ao menos tentou entender o significado de toda uma geração que procedeu a minha. Mas, sinto-me incapacitado, por uma razão “dialética” - termo “caro” a Walmor - porque teria que ao menos que interagir, com minha vida, com tudo o que significou sua vida para a história de todos os brasileiros. E, desgraçadamente, escapa-me, pelos dedos, toda a sua essência, porque não me sinto a altura desta tarefa, como já disse, pela sua grandeza, diante da minha incapacidade em avaliá-la em todas as suas dimensões. Quanta coisa ainda tinha para perguntar-lhe. Quanta coisa...

Mas não se lamenta, como socialista, o cessar de uma rara inteligência, só por razões pessoais. Lamenta-se por toda uma geração que não será capaz de conhecê-la. E talvez, apesar da pouca e tardia convivência, julgo entender do porque Walmor incomodar tanta gente: é porque ele nos forçava a dimensionar, muitas vezes, mesmo sem ter a intenção de fazê-lo, a nossa própria limitação. Um perigo para os egos inchados da nova e da velha guarda. E Walmor fez-me entender isso sem ter que dizê-lo expressamente: sou de outra geração. Uma geração menos idealista, menos inteligente, menos revolucionária. Em uma província, em um país e em um mundo medíocre como o nosso, cheio de falsários de esquerda (porque, os de direita, já o são, mesmo que não o saibam e agreguem a sua ideologia valores humanitários. Porque ideologia, em seu amplo espectro de esquerda, para mim é, antes de tudo, uma questão de caráter), vaidades e pseudo intelectuais, quanta falta vai fazer Walmor, para pô-los no devido lugar. E pô-los no lugar da maneira que só ele sabia fazer. Lembro de uma intervenção sua a respeito dos pedágios das rodovias - quando em uma das raras vezes participou de um programa na TV Executiva - e desandou o Poder Judiciário, com o vigor de um jovem bolchevique e a inteligência de um filósofo. Como não poupava nem a ele mesmo da crítica dialética, tampouco escapou o governador Roberto Requião, o presidente Lula, Cuba e tantos representantes do cenário político tanto da esquerda, quanto da pseudo-esquerda, e como não poderia deixar de ser, da direita brasileira.

E num flash da memória, ilumina-se um acontecimento inusitado, ali na Biblioteca Pública do Paraná, durante um debate sobre os rumos da esquerda, se não me engano. Ao final do debate, Walmor abriu às falas ao público, com a seguinte observação ( estou parafraseando): “Então, abrimos, democraticamente, para as interferências, lembrando sempre que a primeira pergunta é aquela que demorou menos tempo de utilização do raciocínio para ser formulada e, portanto, a mais imbecil”. Assim, como estou parafraseado. Ao encurralar o auditório com a sua observação inicial, o escritor, jornalista, poeta, militante de esquerda, procurava, no meu entender, poupar-se e poupar-nos, intuitivamente, da burrice inerente e persistente na história: esta mesma que já havia vivenciado através dos inúmeros debates e comícios dos quais participou, desde a presença de Prestes em Curitiba poucas semanas antes do Golpe, afirmando que estava “tudo bem porque a esquerda estava no poder” (com toda admiração que temos por Prestes), à resistência democrática contra o Golpe em frente à Prefeitura de Curitiba, o enfrentamento com os cristãos da AP, até os dias atuais, em suas renhidas críticas à condução política do governo Lula. O fato é que a platéia ficou em silêncio por um longo tempo, até que alguém resolveu perguntar alguma coisa (claro que não fui eu, porque já havia entendido o recado) , e deu no que deu. Ao final do debate, ele acabou me confessando: “Viu como eu tinha razão...só que demorou um pouco mais”. Ambos rimos.

Então, se por um lado, sinto-me limitado por não estar à altura de expressar algo neste momento de dor, sou obrigado, historicamente, a fazê-lo, como testemunho para futuras as gerações que não terão a oportunidade de conhecê-lo, a não ser por aquilo que deixou escrito. E tudo que Walmor escreveu é muito menor do que o que de fato ele era e significou. Não que não fosse um ótimo escritor, pelo contrário, mas é que a sua vida não se resume somente àquilo que conseguiu expressar pela arte. Em um país com tantos covardes, era, para mim, um herói, mesmo que tivesse lá os seus defeitos. Levava medalhas com condecorações elevadas, não porque ele mesmo as colocou ou quis que se falasse sobre elas, mas porque a própria vida as colocou em seu peito e as pessoas acabavam descobrindo que elas existiam e ele verdadeiramente as merecia.

Em seus últimos tempos de exílio, não fui visitá-lo. Quando um herói se auto-exila, havemos de respeitar sua decisão. E também queria guardar dele a última imagem: de boina, na noite escura, esgrimando dialeticamente, com elegância, indignação e vigor, não com um, mas dois, três, mas um governo, uma tese, uma história, uma vida, senão até com ele mesmo.

Por certo, não haveria de querer, postumamente, uma estátua, porque suas idéias não ficarão imóveis. E bem feito para um mundo que não aprende a reconhecer seus verdadeiros heróis, e temos por aí estas autoridadezinhas e esquerdinhas de “merda” – outro termo caro ao Walmor - incapazes de entenderem sociologicamente a complexidade da história (afirmou-me, com um sorriso otimista, em um de nossos encontros, que estava lendo o esloveno Slavoj Zizek). Nome de rua? Nem pensar. Quem estaria aos pés de uma Rua ou Avenida Walmor Marcellino? Museu? Muito menos, não era e nunca vai ser um herói do passado.

O velho comunista se foi - e isto não posso perdoar - antes que eu estivesse à altura de fazer-lhe sequer um mísero elogio, apesar de todos os meus esforços em ser um militante melhor e mais preparada a cada dia. Não consegui ainda, comandante, mas um dia eu chego lá.

Quando da tua morte, Walmor, eu estava em Guararema, no interior de São Paulo, empunhando um sabre em defesa do petróleo brasileiro. Estava lá, esgrimando do meu jeito, se não tão bem quanto você – fui um mau aluno - pelo menos tentando. E quando soube que tinha se ido, recolhi-me aos aposentos, para dar-lhe, em minha memória, as honrarias devidas: em meio à salva de tiros, ao vestirem aos teus ombros a bandeira brasileira, fracassei, mais uma vez, como revolucionário... e chorei! Não por mim, nem por você, mas por todos nós. E assumi o teu elogio com o peito aberto, sem falsa modéstia, acerca daquela suposta inteligência que em mim, por você, foi observada. E lembro que diziam, o seus velhos amigos, por aí, nos cantos da Boca, a seu respeito: o Walmor é metido a querer saber tudo, é arrogante, é isto e aquilo. Engraçado, a mim, seu novo amigo, passou-me a impressão de extrema humildade. Bastava saber ouvir e, se não compreendesse, perguntar novamente. Acontece, Walmor, que sou apenas uma pessoa esforçada. E minha inteligência não é aquela, exatamente intelectual, a que você talvez estivesse se referindo. É outra inteligência, a emocional, e constato isto porque tive a consciência de ter dito tudo que você representava para a nossa geração, quando você ainda estava vivo.

Então, não que já não tivesse dito pessoalmente, causando a você um grande desconforto, volto a dizer agora para as nossas futuras gerações: muito obrigado por você ter existido da forma pela qual existiu e acreditado nos ideais pelos quais viveu.

Marcos Henrique Guimarães


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