segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

A força do mercado financeiro impede a diminuição dos gastos públicos

Os economistas dos banqueiros e aqueles cooptados ideologicamente balizam a opinião dos comentaristas de economia dos grandes meios de comunicação há muito tempo. A presidenta Dilma segue a cartilha da ortodoxia econômica e dos porta-vozes do mecado financeiro, assim como o ex-presidente Lula fazia, principalmente quando decidiu continuar dando autonomia as decisões do Banco Central (BACEN) e seu Comitê de Política Monetária (COPOM).
Novamente a desculpa de sempre, isto é, o aumento da inflação serviu de argumento para que os juros básicos subissem para além dos 11% ao ano. O aumento dos preços parece inevitável para uma economia em ascensão (demanda crescente com oferta insuficiente) somado ao fato de que na trasição de um ano para o outro sempre ocorrem distúrbios sazonais na oferta de comodities. Os manuais de economia conservadores sugerem que o remédio inflacionário seja o aumento dos juros para controlar a demanda agregada. Essa decisão agrada muito o mercado financeiro que agradece receber uma maior remuneração pela aquisição dos títulos públicos do governo.
Ao mesmo tempo que a mídia sugere quase que discretamente que o BACEN eleve os juros para controlar a suposta inflação ela também faz questão de lembrar o governo que os gastos do mesmo precisam diminuir, justamente para ajudar a combater a inflação. Qual a lógica dessa pressão? Os meios de comunicação desviam o foco na verdadeira causa do aumento da inflação e da dívida pública, isto é, os juros altos e distorcem a deecisão política que deveria ser tomada na direção tanto de diminuir os gastos públicos quanto sua contribuição para combater a inflação, já que, eventuais aumentos de preços em uma economia de mercado são impossíveis de serem controlados em curto prazo sem causar sequelas. Eles agem de forma muito bem articulada no sentido de permanecer a idéia de que não há outra alternativa e que as medidas devem ser tomadas com austeridade monetária e fiscal para controlar o dragão da inflação e o modelo permaneça transferidor de renda das classes menos abastadas para os endinheirados donos do poder político e econômico.
Para aqueles que não entendem do assunto a situação é essa: enquanto o Brasil insistir em controlar a inflação com aumento dos juros a dívida pública não apenas aumentará como a pressão sobre a taxa de câmbio também. Isso significa que quanto maior os juros maior será a chegada de dólares ao Brasil atraídos pela remuneração que os títulos públicos oferecem fazendo com que o dólar caia ainda mais e o real se valorize e com isso a dívida pública exploda no longo prazo. Se isso continuar as nossas importações aumentarão muito, principalmente em períodos de demanda bastante aquecida e os nossos produtos venderão menos para o exterior, já que eles estarão mais caros para quem os adquire de fora do Brasil. Desta forma poderá ocorrer um déficit na balança comercial, além de contribuir para acelerar o processo de desindustrialização.
Se quisermos evitar a fábrica de consensos midiática para esse e outros assuntos deveremos tomar as vacinas adequadas para a doença infantil da falsa comunicação e informação. A única vacina não deve ser tomada em dose única, já que nunca estaremos totalmente imunes, mas passa pela busca incessante de alternativas de informação e conhecimento que estão em todo o lugar, basta sermos seres mais sociais no que tange a organização política e as redes sociais.

Professor: Marcelo Gonçalves Marcelino

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A crise financeira perdura

A crise financeira sem mistérios


Convergência dos dramas econômicos, sociais e ambientais

Ladislau Dowbor

9 de fevereiro de 2009

“Os benefícios fundamentais da globalização financeira são bem

conhecidos: ao canalizar fundos para os seus usos mais produtivos, ela

pode ajudar tanto os países desenvolvidos como os em via de

desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de vida.”

IMF, Finance & Development, March 2002, p. 13

“Os administradores de fundos enriqueceram e os investidores viram o

seu dinheiro desaparecer. E estamos falando de muito dinheiro, em todo

esse processo” - Paul Krugmann, Folha de São Paulo, 30-12-2008

“O grau de perda de confiança do mundo nas suas instituições é sério”

Klaus Schwab, fundador do Fórum Econômico Mundial, Davos, 2009

Resumo:O presente artigo visa apresentar os principais encadeamentos da crise financeira. Partindo dos

mecanismos imediatos que a desencadearam, analisa em seguida a deterioração dos mecanismos e das

instituições de regulação, e o papel chave que os Estados Unidos desempenham. Na linha da avaliação dos

impactos, busca delinear quem deverá em última instância pagar pela bancarrota do cassino, analisando como

a especulação financeira contribui para a concentração de renda, e como os mecanismos se dão de maneira

diferenciada no Brasil. Na parte final, o artigo apresenta dois grupos de propostas, dos que querem manter o

sistema, mas melhorar a sua regulação; e dos que vêem a crise como oportunidade para se colocar de maneira

mais ampla os problemas da alocação racional de recursos em função dos dramas sociais e ambientais: é a

crise no seu contexto mais amplo, na sua dimensão de oportunidade de resgate do desenvolvimento

sustentável.

Palavras-chave: globalização, crise financeira, especulação, regulação.

Abstract:The workings of the 2008 financial crisis are not very misterious. A mixture of greed, a good dose

of outright fraud, and blatantly absent or corrupt regulation. The paper starts presenting the mechanisms of the

financial machine, including the institutions supposed to regulate it. It then concentrates on the impacts – who

pays for what – and presents the results in terms of income concentration, followed by a few pages on the

specific situation of the Brazilian financial intermediation system. The last part of the paper presents two

groups of responses: on one hand, the ideas concerning the improvement of the regulatory framework, emitted

by analysts or institutions interested in maintaining the system while making it more efficient; on the other

hand, the views of those who consider that the present crisis is an opportunity to restructure the system,

showing that the crisis of the financial system is in fact a part of the larger picture, that involves the social and

environmental dramas.

Key words: globalization, financial crisis, speculation, regulation.

Tirando a roupa (financeira)

As pessoas imaginam profundas articulações onde, em geral, há mecanismos bastante

simples. Nada como alguns exemplos para ver como funciona. Há poucos anos estourou o

desastre da Enron, uma das maiores e mais conceituadas multinacionais americanas. Foi

uma crise financeira e um dos principais mecanismos de geração fraudulenta de recursos

2

fictícios, foi um charme de simplicidade. Manda-se um laranja qualquer abrir uma empresa

laranja num paraíso fiscal como Belize. Esta empresa reconhece por documento uma dívida

de, por exemplo, 100 milhões de dólares. Esta dívida entra na contabilidade da Enron como

“ativo”, e melhora a imagem financeira da empresa. Os balanços publicados ficam mais

positivos, o que eleva a confiança dos compradores de ações. As ações sobem, o que

valoriza a empresa, que passa a valer os cem milhões suplementares que dizia ter.

Os executivos da Enron acharam o processo muito interessante. O setor de produção (que

produzia efetivamente coisas úteis) foi colocado no seu devido lugar, e os magos da finança

se lançaram no filão que apresentava a vantagem de ser menos trabalhoso e mais lucrativo.

No momento da falência, a Enron tinha 1600 empresas fictícias na sua contabilidade. A

empresa de auditoria Arthur Andersen não percebeu. As empresas de avaliação de risco não

perceberam. A primeira tinha a Enron como cliente de consultoria. As segundas são pagas

pelas empresas que avaliam.

Partimos deste exemplo da Enron porque é simples, representa um mecanismo de fraude

honesto e transparente. Não viu quem não quis. E também para marcar o que é uma cultura

da área financeira, onde vale rigorosamente tudo, conquanto não sejamos pegos. Não é o

reino dos inteligentes (tanto assim que quebram), mas dos espertos. E os que buscam

produzir bens e serviços realmente úteis são levados de roldão, em parte culpados porque

toleraram idiotas disfarçados em magos de finanças e marketing. Qualquer semelhança com

empresas nacionais que se lançaram em aventuras especulativas é mera coincidência.1

O estopim da crise financeira de 2008 foi o mercado imobiliário norte-americano. Abriu-se

crédito para compra de imóveis por parte de pessoas qualificadas pelos profissionais do

mercado de Ninjas (No Income, No Jobs, no Savings). Empurra-se uma casa de 300 mil

dólares para uma pessoa, digamos assim, pouco capitalizada. Não tem problema, diz o

corretor: as casas estão se valorizando, em um ano a sua casa valerá 380 mil, o que

representa um ganho seu de 80 mil, que o senhor poderá usar para saldar uma parte dos

atrasados e refinanciar o resto. O corretor repassa este contrato – simpaticamente

qualificado de “sub-prime”, pois não é totalmente de primeira linha, é apenas sub-primeira

linha – para um banco, e os dois racham a perspectiva suculenta dos 80 mil dólares que

serão ganhos e pagos sob forma de reembolso e juros. O banco, ao ver o volume de “subprime”

na sua carteira, decide repassar uma parte do que internamente qualifica de “junk”

(aproximadamente lixo), para quem irá “securitizar” a operação, ou seja, assegurar certas

garantias em caso de inadimplência total, em troca evidentemente de uma taxa. Mais um

pequeno ganho sobre os futuros 80 mil, que evidentemente ainda são hipotéticos.

Hipotéticos mas prováveis, pois a massa de crédito jogada no mercado imobiliário

dinamiza as compras, e a tendência é os preços subirem.

As empresas financeiras que juntam desta forma uma grande massa de “junk” assinados

pelos chamados “ninjas”, começam a ficar preocupadas, e empurram os papéis mais

adiante. No caso, o ideal é um poupador sueco, por exemplo, a quem uma agência local

oferece um “ótimo negócio” para a sua aposentadoria, pois é um “sub-prime”, ou seja, um

tanto arriscado, mas que paga bons juros. Para tornar o negócio mais apetitoso, o lixo foi

1 “A sedução do jogo envolveu até gerentes de empresas industriais, como os da Sadia, que perdeu R$670

milhões apostando em derivativos, e a Aracruz, que perdeu R$1,85 bilhão” – Bernardo Kucinski, Revista do

Brasil, Novembro 2008, p. 18; a Sadia demitiu 350 funcionários em janeiro de 2009, como se fossem os

responsáveis.

3

ele mesmo dividido em AAA, BBB e assim por diante, permitindo ao poupador, ou a

algum fundo de aposentadoria menos cauteloso, adquirir lixo qualificado. O nome do lixo

passa a ser designado como SIV, ou Structured Investment Vehicle, o que é bastante mais

respeitável. Os papéis vão assim se espalhando e enquanto o valor dos imóveis nos EUA

sobe, formando a chamada “bolha”, o sistema funciona, permitindo o seu alastramento, pois

um vizinho conta a outro quanto a sua aposentadoria já valorizou.

Para entender a crise atual, não muito diferente no seu rumo geral do caso da Enron, basta

fazer o caminho inverso. Frente a um excesso de pessoas sem recurso algum para pagar os

compromissos assumidos, as agências bancárias nos EUA são levadas a executar a

hipoteca, ou seja, apropriam-se das casas. Um banco não vê muita utilidade em acumular

casas, a não ser para vendê-las e recuperar dinheiro. Com numerosas agências bancárias

colocando casas à venda, os preços começam a baixar fortemente. Com isso, o Ninja que

esperava ganhar os 80 mil para ir financiando a sua compra irresponsável, vê que a sua casa

não apenas não valorizou, mas perdeu valor. O mercado de imóveis fica saturado, os preços

caem mais ainda, pois cada agência ou particular procura vender rapidamente antes que os

preços caiam mais ainda. A bolha estourou. O sueco que foi o último elo e que ficou com

os papéis – agora já qualificados de “papéis tóxicos” – é informado pelo gerente da sua

conta que lamentavelmente o seu fundo de aposentadoria tornou-se muito pequeno. “O que

se pode fazer, o senhor sabe, o mercado é sempre um risco”. O sueco perde a

aposentadoria, o Ninja volta para a rua, alguém tinha de perder. Este alguém, naturalmente,

não seria o intermediário financeiro. Os fundos de pensão são o alvo predileto, como o

foram no caso da Enron.

Mas onde a agência bancária encontrou tanto dinheiro para emprestar de forma

irresponsável? Porque afinal tinha de entregar ao Ninja um cheque de 300 mil para efetuar

a compra. O mecanismo, aqui também, é rigorosamente simples. Ao Ninja não se entrega

dinheiro, mas um cheque. Este cheque vai para a mão de quem vendeu a casa, e será

depositado no mesmo banco ou em outro banco. No primeiro caso, voltou para casa, e o

banco dará conselho ao novo depositante sobre como aplicar o valor do cheque na própria

agência. No segundo caso, como diversos bancos emitem cheques de forma razoavelmente

equilibrada, o mecanismo de compensação à noite permite que nas trocas todos fiquem

mais ou menos na mesma situação. O banco, portanto, precisa apenas de um pouco de

dinheiro para cobrir desequilíbrios momentâneos. A relação entre o dinheiro que empresta

– na prática o cheque que emite corresponde a uma emissão monetária – e o dinheiro que

precisa ter em caixa para não ficar “descoberto” chama-se alavancagem.

A alavancagem, descoberta ou pelo menos generalizada já na renascença pelos banqueiros

de Veneza, é uma maravilha. Permite ao banco emprestar dinheiro que não tem. Em

acordos internacionais (acordos de cavalheiros, ninguém terá a má educação de verificar)

no quadro do BIS (Bank for International Settlements) de Basileia, na Suíça, recomenda-se

por exemplo que os bancos não emprestem mais de nove vezes o que têm em caixa, e que

mantenham um mínimo de coerência entre os prazos de empréstimos e os prazos de

restituições, para não ficarem “descobertos” no curto prazo, mesmo que tenham dinheiro a

receber a longo prazo. Para se ter uma idéia da importância das recomendações de Basileia,

4

basta dizer que os bancos americanos que quebraram tinham uma alavancagem da ordem

de 1 para 40.2

A vantagem de se emprestar dinheiro que não se tem é muito grande. Por exemplo, a pessoa

que aplica o seu dinheiro numa agência verá o seu dinheiro render cerca de 10% ao ano. O

banco tem de creditar estes 10% na conta do aplicador. Se emprestar este dinheiro para

alguém a 20%, por exemplo, terá de descontar dos seus ganhos os 10% da aplicação. Mas

quando empresta dinheiro que não tem, não precisa pagar nada, é lucro líquido. A

alavancagem torna-se portanto muito atraente. E a tentação de exagerar na diferença entre o

que tem no caixa e o que empresta torna-se muito grande. Sobretudo quando vê que outros

bancos tampouco são cautelosos, e estão ganhando cada vez mais dinheiro. É uma corrida

para ver quem agarra o cliente primeiro, pouco importa o risco. E os ganhos são tão

estupendos...

A ficção da regulação

A “bolha” imobiliária vinha sendo comentada há pelo menos três anos. Greenspan previa

um “soft landing”, ou seja, um esvaziamento suave da bolha, e não o “crash landing” que

finalmente aconteceu. É interessante comparar a frase ufanista do FMI em 2002, que

colocamos em epígrafe no início deste artigo, com a avaliação bastante mais cautelosa e até

alarmante que aparece já em 2005: “Ainda que seja difícil ser categórico sobre qualquer

coisa tão complexa como o sistema financeiro moderno, é possível que estes

desenvolvimentos estejam criando mais movimento procíclicos que no passado. Podem

igualmente estar criando uma probabilidade maior (mesmo que ainda pequena) de um

colapso catastrófico (catastrophic meltdown). ”3

Em dezembro de 2007, o FMI lança um grito: “Global governance: who’s in charge?” diz

a capa da publicação, claramente sugerindo que ninguém está “in charge”, ninguém está

regulando nada. “Lax, if not fraudulent, underwriting practices in subprime mortgage

lending largely explain the rise in the rate of seriously delinquent loans from 6 percent to 9

percent between the second quarter of 2006 and the second quarter of 2007”. Na época já

estimava que o lixo tóxico (troubled loans como era ainda chamado) estava corrompendo

(disrupting) o mercado financeiro americano de 57 trilhões de dólares. A culpa recai,

segundo o Fundo, sobre a globalização do sistema, que levou ao abandono das “local

depository institutions [which] make loans” em proveito dos “major Wall street banks and

securities firms, which employ the latest financial engineering to repackage mortgages into

2 A Lehman, por exemplo, com alavancagem de 31 em 2007, entrou numa corrida para reduzi-la e tentar

evitar a quebra que acabou ocorrendo. (Business Week, july 28, 2008, p. 27). A revista explica um

mecanismo simples: se a instituição emprestou 150 bilhões sobre um capital de 10 bilhões, portanto com uma

alavancagem de 15, uma redução de 3 bilhões de capital próprio a obrigaria a reduzir a sua exposição em 45

bilhões (3 bilhões x 15) para manter a mesma alavancagem. Haja “liquidez”. No momento da quebra a

Lehman tinha bilhões em cerca de um milhão de acordos de “derivativos” com cerca de 8 mil empresas,

deixando os novos administradores bastante desorientados. (Business Week, October 20, 2008, p. 34)

3 Raghuram Rajan, diretor do departamento de pesquisa do FMI, Finance and Development, IMF, September

2005, p. 54, sob o título “Risky Business”. – No original: “While it is hard to be categorical about anything as

complex as the modern financial system, it’s possible that these developments are creating more financialsector

induced procyclicality than in the past. They may also create a greater (albeit still small) probablility of

a catastrophic meltdown”.

5

securities through credit derivatives and collateralized debt obligations”. O uso de paraísos

fiscais está igualmente bem mapeado: “Securitization involves the pooling of mortgages

into a special-purpose vehicle, which is simply a corporation registered in what is usually

an off-shore tax-haven country”. Este e outros canais eram utilizados, segundo o Fundo, “to

keep the subprime assets off their books and to avoid related capital requirements”. A

expressão “keep off their books” nos é familiarmente conhecida como “caixa dois”.4

Atribuir a crise ao “pânico” e outras manifestações irracionais não tem muito sentido. O

pânico existe, pois as pessoas não gostam de perder dinheiro. Mas tem a sua origem no

comportamento fraudulento quando não criminoso das principais instituições financeiras. E

sobretudo na ausência de qualquer vontade ou capacidade reguladora do FED e do governo

norte-americano.

Quando os pequenos bancos locais se transformam em gigantes planetários, a imprensa

apresenta a evolução como positiva, dizendo que os bancos ficam ‘mais sólidos”. A

realidade é que ficam mais poderosos, logo menos controlados. No conjunto, o que

aconteceu com a globalização financeira é que os papéis circulam no planeta todo,

enquanto os instrumentos de regulação, os bancos centrais nacionais, estão fragmentados

em cerca de 190 nações. Na prática, ninguém está encarregado de regular coisa alguma. E

se algum país decide controlar os capitais, estes fugirão para lugares mais hospitaleiros

(market-friendly), em processo muito parecido com os mecanismos de guerra fiscal entre

municípios. Nas análises das Nações Unidas, isto é chamado de race to the bottom, corrida

para o fundo, de quem reduz mais as suas próprias capacidades de controle.

Lembremos aqui que os gigantes globalizados da finança, os chamados Institutional

Investors, constituem um grupo pequeno e seleto. Segundo o New Scientist, 66 grupos

apenas gerem 75% das movimentações especulativas planetárias que eram da ordem de 2,1

trilhões de dólares por dia na véspera do agravamento da crise em 2008.5 É fácil imaginar o

poder político que corresponde a esta capacidade de irrigar com dinheiro ou desequilibrar

com fugas qualquer economia. Stigliz lembra bem que se trata de um clube de pessoas que

circulam alternadamente entre Wall Street, o Departamento do Tesouro norte-americano, o

FMI e o Banco Mundial. Paulson, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, na gestão

Bush, pertencia à Goldman & Sachs. O mecanismo é familiarmente chamado de “porta

giratória”.

Haveria ainda de se considerar o papel regulador das agências avaliadoras de risco. O muito

conservador The Economist chega a se indignar com o peso que adquiriu este oligopólio de

tres empresas – Moody’s, Standard & Poor (S&P) e Fitch – que “fazem face a críticas

pesadas nos últimos anos, por terem errado relativamente a crises como as da Enron, da

WorldCom e da Parmalat. Estes erros, a importância crescente das agências, a falta de

competição entre elas e a ausência de escrutínio externo estão começando a deixar algumas

pessoas nervosas”. The Economist argumenta também que as agências de avaliação são

pagas pelos que emitem títulos, e não por investidores que utilizarão as avaliações de risco,

4 IMF, Finance and Development, December 2007, Sub-prime: Tentacles of a Crisis, p. 15 e ss. O autor do

artigo, Randall Dodd, é Senior Financial Expert in the IMF Monetary and Capital Markets Department.

5 New Scientist, 25 October 2008, p. 9

6

com evidentes conflitos de interesse. O resultado é que “a mais poderosa força nos

mercados de capital está desprovida de qualquer regulação significativa”.6

A pá de cal na capacidade de regulação veio no final dos anos 1990 quando se liquidou a

separação entre os bancos comerciais tradicionais, que tipicamente recebiam depósitos de

correntistas e faziam empréstimos locais, e os investidores institucionais. Todo mundo

passou a fazer o que quisesse, os intermediários financeiros passaram a ser

“supermercados” de produtos financeiros e inclusive grandes empresas industriais e

comerciais viraram especuladores.7

Nesta discrepância entre finanças globais e regulação nacional, jogam um papel

complementar importante os paraísos fiscais, cerca de 70 “nações”, ilhas da fantasia onde

frequentemente existem mais empresas registradas do que habitantes, e onde não se pagam

impostos nem exigem relatórios de atividades. Estes paraísos exercem hoje o papel que no

século XVIII desempenhavam algumas ilhas do Caribe que constituíam abrigos

permanentes de piratas, onde os produtos da ilegalidade podiam ser estocados, trocados e

comercializados. Mudou apenas o tipo de produto, encobrindo não só caixa dois, como

evasão fiscal, tráfego de armas e lavagem de dinheiro. Não haverá um mínimo de ordem

financeira mundial enquanto subsistirem estes off-shores de ilegalidade.

Circo, cassino, ciranda financeira, estes são os termos com os quais já há tempos

especialistas têm designado o carnaval econômico que oportunistas dos mais variados tipos

desenvolvem com dinheiro que não é deles – se trata de poupanças da população ou de

emissão de dinheiro com autorização pública – e que acaba quebrando não os próprios

intermediários, mas pessoas, empresas ou países que produzem, poupam e investem.

O papel dos Estados Unidos

O epicentro da atual crise está nos Estados Unidos, e o eixo desencadeador foi o mercado

imobiliário. Mas a diferença relativamente às crises dos hedge funds ou do Long Term

6 The Economist, Credit-rating agencies: Special Report – 28 de março de 2005, p. 67 e ss. A última citação

é de Glenn Reynolds, de uma firma independente de pesquisa de crédito, no mesmo artigo. O The Economist

de 15 de novembro de 2008 refere-se ao “oligopólio criado”, e ao “central conflict bedevilling the industry:

although ratings are relied on by investors and regulators as impartial measures, the rating agencies are paid

by those they rate for their judgments. With their marks of approval stamped all over the most toxic assets

poisoning the financial system, they were quickly blamed for helping cause the credit crunch”. (p. 91)

7 Paul de Grauwe explica: “We learned from the Great Depression that in order to avoid such crises we have

to limit risk taking by bankers. We unlearned this lesson during the 1980s and 1990s when the banking sector

was progressively deregulated, thus giving banks opportunities to seek high risk investments. The culmination

of this deregulatory movement was the repeal of the Glass-steagall Act in 1999 under the Clinton

Administration. This ended the separation of the commercial and investment banking activities in the US – a

separation that had been in place since the 1930s banking collapse. Repeal of the Glass-Steagall Act opened

the gates for US banks to take on the full panoply of risky assets (securities, derivatives and structured

products) either directly on their balance sheets or indirectly through off-balance sheet conduits. Similar

processes of deregulation occurred elsewhere, in particular in Europe, blurring the distinction between

investment and commercial banks, and in the process creating “universal banks”. It now appears that this

deregulatory process has sown the seeds of instability in the banking system”. Paul de Grauwe, Returning to

narrow banking, What G20 leaders must do to stabilise our economy and fix the financial system, VoxEU.org

Publication, November 9, 2008, p. 37 – O documento apresenta visões e propostas de 17 especialistas, em

trabalho coordenado por Barry Eichengreen - http://www.voxeu.org/index.php?q=node/2543

7

Capital Management (LTCM) de poucos anos atrás, é a nova fragilidade dos Estados

Unidos. A tradição ideológica exige que se considere os EUA à beira do colapso ou como

poderoso bastião do capitalismo, segundo as posições. A realidade é que se trata sim de um

poderoso bastião, mas impressionantemente fragilizado.

Os Estados Unidos têm uma dívida pública de 10,5 trilhões de dólares. Como ninguém

consegue imaginar o que pode representar tal soma, vale a pena lembrar que o PIB mundial

é da ordem de 55 trilhões de dólares. Ou seja, a dívida pública norte-americana representa

cerca de um quinto do PIB mundial. É um país que vive acima de suas posses. O American

Way of Life é amplamente artificial. Sem falar do conteúdo das atividades: os custos

advocatícios empresariais são da ordem de 370 bilhões de dólares por ano, e pode-se

duvidar se este aumento do PIB gera qualidade no Way of Life.

O endividamento como nação se reflete na situação das famílias. O americano adulto médio

tem oito cartões de crédito, e gasta um terço da sua renda com o pagamento de dívidas.

Apresentado no momento da concessão, o crédito aparece como um instrumento de

dinamização da conjuntura, pois aumenta a capacidade de compra da família. No entanto,

cada dívida significa não só reembolso, como pagamento de juros e, na realidade, o que se

consegue com endividamento é uma antecipação de consumo, e não o seu aumento.

Quando chega a hora de pagar, o efeito se inverte. Até onde irão as famílias norteamericanas

no faz-de-conta de prosperidade?

Private debt as percentage of GDP

Fonte: Monthly Review. John Bellamy Foster and Fred Magdoff (Dez. 2008)8

8 Disponível em http://www.monthlyreview.org/081201foster-magdoff.php

8

O endividamento doméstico total, público e privado, atinge em 2007quase 48 trilhões de

dólares. Lembremos que o PIB mundial é de 55 trilhões, e os americanos estão endividados

quase neste valor, vivendo artificialmente num castelo de cartas.9

Os dois endividamentos, público e privado, dependem no caso americano de um

desequilíbrio entre importações e exportações, da ordem de 1 trilhão de dólares

anualmente.10 Este déficit sistemático levou a um acúmulo de reservas em dólares em

particular pela China, que detém curiosamente hoje uma capacidade impressionante de

desestabilização do sistema monetário norte-americano. Imagina, comenta informalmente

Ignacy Sachs, o Partido Comunista da China salvando a economia americana.

Neste final de 2008, as matrizes norte americanas de multinacionais estão comprando

dólares nos mercados do mundo para se recapitalizar, e inúmeras empresas com dívidas

denominadas em dólar buscam igualmente a moeda, além de especuladores tentando

“realizar” papéis podres transformando-os em moeda real, gerando uma valorização. O

médio prazo deste processo é simplesmente um ponto de interrogação, em particular

considerando a gigantesca massa de dólares que os EUA emitiram quando estes eram – e

ainda são em parte – ao mesmo tempo moeda nacional e moeda-reserva mundial.11

O efeito desequilibrador que os Estados Unidos geram no planeta é poderoso, e isto torna as

responsabilidades do novo governo eleito muito amplas. Os desequilíbrios monetários e

financeiros foram-se acumulando durante as décadas da farra neoliberal, e hoje estão

gravadas nas estruturas produtivas. Mais importante ainda, a dinâmica recente de

concentração de renda nos Estados Unidos, inclusive com a drástica redução de impostos

pagos pelos ricos, geraram uma cultura do lucro fácil e uma estrutura de poder que de tudo

fará para manter o sistema. Os ajustes terão de ser profundos.

Quem paga a conta?

A conta da irresponsabilidade norte-americana, devidamente imitada em outros países que

até ontem nos davam lições, ainda está por ser apresentada.12 A curtíssimo prazo, e

buscando conter o pânico entre eleitores, os governos dos países mais afetados procuraram

tranquilizar os milhões de pequenos depositantes. Neste sentido, vários países passaram a

assegurar que no caso de quebra de um banco, por exemplo, o governo ressarciria as perdas

dos correntistas até 100 mil dólares, ou até sem limite, segundo os países. O processo é

9 O Economist informa: “The world is only beginning to couint the cost of the bust. In America the share of

household and consumer debt alone went up from 100% od GDP in 1980 to 173% today, the equivalent to

around $6 trillion of extra borrowing” – The Economist, A Special Report on the Future of Finance, January

24 2009, p. 20

10 Em novembro de 2008 o balança comercial dos EUA estava deficitária em 848 bilhões nos 12 meses,

segundo The Economist, 15 November 2008, p. 118

11 Avaliação de riscos futuros do dólar no WEF de Davos em 2009: “Major fall in US$: Experts consider that

the dollar could come under pressure as investors reflect on the long-term impact of current monetary

expansion, high fiscal deficits and the continuing fragility of the US financial system.” – World Economic

Forum, Global Risks 2009, p. 28 – www.globalrisks2009.pdf

12 A reunião do G20 se referiu de maneira extremamente delicada à responsabilidade norte-americana:

“Policy-makers, regulators and supervisors, in some advanced countries, did not adequately appreciate and

address the risks building up in financial markets” – Statement from the G-20 Summit, November 15, 2008,

ponto 3 (grifo nosso, LD).

9

interessante, pois o correntista seria ressarcido do seu próprio dinheiro com dinheiro que

pagou para o governo sob forma de impostos. A generosidade governamental escapa à

compreensão de muitos, que acham que talvez devessem ser debitados os especuladores

que afinal especularam precisamente com o dinheiro dos poupadores.

Mas a grande massa de movimentação financeira foi evidentemente no socorro às

instituições financeiras que estão quebrando. Neste início de 2009, a conta dos recursos

mobilizados está em cerca de 4 trilhões de dólares. Como o ex-presidente Bush explicou

candidamente, isto ia contra as suas convicções, mas como uma quebradeira geral iria

prejudicar ainda mais a população, e sendo o bem-estar desta a sua preocupação maior,

tinha de mobilizar o dinheiro necessário. Dinheiro público, naturalmente, pois se tratava

justamente de não prejudicar os bancos ou seguradoras. Aqui também, para o público, ficou

um sentimento profundamente ambíguo: alívio porque a quebradeira seria evitada, ou

retardada, mas também a amarga constatação de que se estava salvando especuladores com

o próprio dinheiro do público. Na primeira reviravolta do “mercado” após o anúncio dos

700 bilhões do governo americano, quando o mercado se recuperou momentâneamente,

houve declarações – lamentavelmente públicas – de especuladores: “The happy days are

back”. Já não dizem o mesmo, pelo menos por enquanto. Ponto essencial, é preciso lembrar

que os trilhões desembolsados pelo governo não estarão disponíveis para políticas públicas

em saúde, educação e assim por diante. Alguém tem de pagar.

Um drama que ainda se desenrola, e de dimensões imprevisíveis, é o dos que pouparam a

vida inteira para formar um fundo de pensão, e dos próprios grandes fundos que tinham os

seus ativos aplicados em ações que perderam valor. É preciso lembrar que os

administradores das grandes instituições de especulação trabalham essencialmente com

dinheiro de terceiros, e que têm os seus salários – em geral na faixa de dezenas de milhões

ao ano – garantidos, foram os primeiros a saber como realocar o que tinham em opções

empresariais. Mas os detentores de ações perderam massas avassaladoras de recursos, mais

de 30 trilhões neste início de 2009. Quando uma pessoa tem mil dólares em dinheiro,

enquanto não houver um surto inflacionário, tem o seu poder de compra garantido. Mas

quando os seus dólares foram transformados em papéis que perderam todo valor, estão

arruinados. Muita gente procurou dólares para se livrar de ações de empresas perfeitamente

produtivas, e que fazem coisas úteis, buscando a segurança do dinheiro vivo, agravando o

processo.

Gera-se assim um amplo efeito multiplicador, em que a irresponsabilidade da especulação

financeira atinge áreas de atividades produtivas. Note-se aqui que “especulação” é o termo

tecnicamente correto. O inglês não tem, como temos em português, a diferença entre

investimento e aplicação financeira. Tecnicamente, o investimento é quando alguém

constrói uma fábrica, por exemplo, e com o lucro da produção financiará a restituição do

empréstimo e os juros correspondentes. À movimentação financeira correspondeu uma

atividade produtiva. No caso da aplicação financeira apenas se transfere ativos financeiros

de uma área para outra, não se gera produto ou serviço algum.13 O Economist, que sempre

considerou este último tipo de aplicação como “investment”, e durante décadas declarou

que a especulação ajudava na mobilidade dos capitais e, portanto, no seu uso mais

13 Típico deste mecanismo é o carry trade, onde um especulador pega um empréstimo barato por exemplo no

Japão, e aplica onde rende mais, por exemplo no Brasil. Não produz nada, desorganiza a eficiência da política

monetária de cada país, pelo próprio volume de recursos asssim mobilizados.

10

produtivo, hoje enfrenta grandes dificuldades para sair da saia justa: não querendo acusar os

amigos de sempre de especuladores, passou a chamá-los de “speculative investors”.14 Os

doutores sofistas de tempos passados não inventariam melhor.

O desvio dos recursos financeiros que seriam disponíveis para investimento,

transformando-os em aplicações financeiras, constitui na realidade uma esterilização da

poupança e da capacidade de desenvolvimento real da economia. Com isto rompe-se um

pacto não declarado: podemos falar da injustiça que representa algumas pessoas terem

fortunas enquanto outras estão na miséria, mas sempre ficava na nossa cabeça a visão de

que o rico, afinal, vai utilizar os seus lucros em investimentos, que irão gerar produtos e

empregos. Hoje, não é mais o caso. Esta esterilização da poupança torna-se clara no gráfico

abaixo, que mostra a elevação dos lucros enquanto cai o investimento.

Profits and net investment as percentage of GDP 1960 to present

Fonte: Monthly Review. John Bellamy Foster and Fred Magdof (Dez. 2008)

Temos assim um processo desequilibrado, em que por um lado os impressionantes avanços

tecnológicos permitiram fortes aumentos de produtividade sistêmica no planeta, mas por

outro lado a apropriação dos excedentes gerados se dá na mão de intermediários, não de

14 The Economist, November 15, 2008, p. 89 – David Korten traz um comentário divertido sobre o assunto: “I

grumble every time I hear business reports on the evening news refer to stock market results by saying

“Today, investors [did this or that].” Real investors commit funds and their entrepreneurial energy to creating

and growing businesses. People who buy and sell pieces of paper in hopes of making unearned gains on price

movements are engaging in speculation, otherwise known as gambling, and those who hold the bets and

distribute the winnings are bookies. Simply using honest language would help to distinguish between real

investors creating real wealth and speculators creating phantom wealth with financial games” – David Korten,

Agenda for a New Economy, Berret-Koehler, San Francisco, 2009, p. 124 – Ver p. 122 para a lista de 12

medidas contra a crise propostas por Korten.

11

produtores, e muito menos dos trabalhadores. Este desvio das capacidades financeiras, do

investimento produtivo para as esferas da especulação, está no centro da perversão

sistêmica que enfrentamos.15

Especulação e concentração de renda

Num plano mais amplo, portanto, o próprio sistema é desequilibrado em termos de

alocação e de apropriação de recursos, mesmo quando não há crise. Marjorie Kelly

produziu nesta área um estudo particularmente interessante, intitulado “O direito divino do

capital”. Analisando o mercado de ações dos Estados Unidos, Kelly constata que a imagem

das empresas se capitalizarem por meio da venda de ações é uma bobagem, pois o processo

é marginal: “Dólares investidos chegam às corporações apenas quando novas ações são

vendidas. Em 1999 o valor de ações novas vendidas no mercado foi de 106 bilhões de

dólares, enquanto o valor das ações negociado atingiu um gigantesco 20,4 trilhões. Assim

que de todo o volume de ações girando em Wall Street, menos de 1% chegou às empresas.

Podemos concluir que o mercado é 1% produtivo e 99% especulativo”. Mas naturalmente,

as pessoas ganham com as ações e, portanto, há uma saída de recursos: “Em outras

palavras, quando se olha para as duas décadas de 1981 a 2000, não se encontra uma entrada

líquida de dinheiro de acionistas, e sim saídas. A saída líquida (net outflow) desde 1981

para novas emissões de ações foi negativa em 540 bilhões”... “A saída líquida tem sido um

fenômeno muito real – e não algum truque estatístico. Em vez de capitalizar as empresas, o

mercado de ações as tem descapitalizado. Durante décadas os acionistas têm se constituído

em imensos drenos das corporações. São o mais morto dos pesos mortos. É inclusive

inexato se referir aos acionistas como investidores, pois na realidade são extratores.

Quando compramos ações não estamos contribuindo com capital, estamos comprando o

direito de extrair riqueza”.16

Esta forma de drenar a riqueza produzida pelas empresas está baseada num pacto de

solidariedade nas próprias corporações, em que os acionistas são bem remunerados pelos

seus aportes iniciais, e os administradores levam salários nababescos (na faixa de dezenas e

frequentemente centenas de milhões de dólares anuais mais opções)17. Encontramos aqui a

boa e velha mais valia, onde a produtividade do trabalho aumenta de forma acelerada

graças às novas tecnologias, mas a participação da remuneração do trabalho declina. O FMI

apresenta uma tabela bem clara referente aos países mais desenvolvidos:

15 A Unctad, sob orientação de Rubens Ricúpero, já alertava no início dos anos 2000 para esta deformação do

sistema. Ver por exemplo Unctad, Trade and Development Report 2001, p. vii; a avaliação de Ricúpero sobre

as dimensões políticas da crise financeira podem ser encontradas em A crise financeira e a queda do muro de

Berlim http://dowbor.org/crise/08ricupero.pdf

16 Marjorie Kelly – The Divine Right of Capital – Berrett-Koehler, San Francisco, 2001, páginas 33 e 35 –

Reproduzimos aqui um segmento do que estudamos mais amplamente no ensaio Democracia Econômica,

Vozes, 2008 – Ver também http://dowbor.org

17 As diversas classificações de pagamento aos administradores corporativos, com os valores, podem ser

encontradas em http://toomuchonline.org/ExecPayScoreboard.html

12

Fonte: IMF, Finance&Development, (Jun 2007, p. 21).

Constatamos que a parte da renda destinada à remuneração do trabalho cai

sistematicamente entre 1980 e 2005 nos países avançados. É o efeito prático mais direto do

neoliberalismo. É interessante lembrar que em 1980 se inicia, com Reagan e Margareth

Thatcher, a onda neoliberal. E é bom recorrer às estatísticas do Fundo, pouco suspeito no

caso.18

A compreensão deste “pano de fundo” é importante, pois não se trata apenas de um sistema

bom que entrou em crise por movimentos conjunturais: a financeirização dos processos

econômicos vem há décadas se alimentando da apropriação dos ganhos da produtividade

que a revolução tecnológica em curso permite, de forma radicalmente desequilibrada. Não é

o caso de desenvolver o tema aqui, mas é importante lembrar que a concentração de renda

no planeta está atingindo limiares absolutamente obscenos. 19

18 Fonte do gráfico: IMF, Finance&Development, June 2007, p. 21

19 Há imensa literatura sobre o assunto. O gráfico acima é do Relatório de Desenvolvimento Humano 1998

das Nações Unidas; para uma atualização em 2005, ver Human Development Report 2005, p. 37. Não houve

mudanças substantivas. Uma excelente análise do agravamento recente destes números pode ser encontrada

no relatório Report on the World Social Situation 2005, The Inequality Predicament, United Nations, New

York 2005; O documento do Banco Mundial, The next 4 billion, que avalia em 4 bilhões as pessoas que estão

“fora dos benefícios da globalização”, é igualmente interessante – IFC. The Next 4 Billion, Washington, 2007;

estamos falando de dois terços da população mundial. Para uma análise ampliada do processos, ver o nosso

Democracia Econômica, ed. Vozes 2008, bem como o artigo Inovação Social e Sustentabilidade, ambos

disponíveis em http://dowbor.org .

13

Fonte: Human Development Report (1998, p. 37)

A imagem da taça de champagne é extremamente expressiva, pois mostra quem toma que

parte do conteúdo, e em geral as pessoas não têm consciência da profundidade do drama.

Os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda. Como ordem de grandeza, os dois

terços mais pobres têm acesso a apenas 6%. Em 1960, os 20% mais ricos se apropriavam de

70 vezes a renda dos 20% mais pobres, em 1989 são 140 vezes. A concentração de renda é

absolutamente escandalosa, e nos obriga de ver de frente tanto o problema ético, da

injustiça e dos dramas de bilhões de pessoas, como o problema econômico, pois estamos

excluindo bilhões de pessoas que poderiam estar não só vivendo melhor, como

contribuindo de forma mais ampla com a sua capacidade produtiva.

Esta concentração não se deve apenas à especulação financeira, mas a contribuição é

significativa e, sobretudo, é absurdo desviar o capital de prioridades planetárias óbvias.

The Economist traz uma cifra impressionante sobre esta apropriação do excendente social,

gerado essencialmente por avanços tecnológicos da área produtiva, pelo setor que

simpaticamente qualifica de “indústria de serviços financeiros”: “The financial-services

industry is condemned to suffer a horrible contraction. In America the industry’s share of

total corporate profits climbed from 10% in the early 1980s to 40% at its peak in 2007”

Gera-se uma clara clivagem entre os que trazem inovações tecnológicos e produzem bens e

serviços socialmente úteis – os engenheiros do processo, digamos assim – e o sistema de

intermediários financeiros, comerciais e advocatícios que se apropriam do excedente e

deformam a orientação do conjunto. 20

A evolução paralela da queda dos salários no PIB, e do aumento dos lucros financeiros,

que aparece nos gráficos abaixo de Foster e Magdoff, torna o processo evidente.

20 The Economist, A Special Report on the Future of Finance, January 24th 2009, p. 20; é interessante notar

que há pouca divergência nestes dados entre o FMI e The Economist de direita, e uma visão mais de esquerda

de Foster e Magdoff. A convergência das cifras também reforça a confiabilidade.

14

Growth of financial and nonfinancial Wage and salary disbursements as a

percent-age of GDP profits relative to GDP (1970 = 100)

Fonte: Monthly Review. John Bellamy Foster and Fred Magdoff (Dez. 2008).

O cassino tornou-se um entrave central no processo de desenvolvimento em geral. Além da

extração tradicional de mais-valia através da políticas salariais nas empresas, gerou-se

assim um instrumento de concentração de renda no nível macroeconômico, por meio dos

circuitos financeiros desregulados, processo que temos qualificado de mais-valia social.

Desta forma, a crise, pela força do seu impacto, está simplesmente restabelecendo uma

verdade elementar: o sistema financeiro não é um fim, é apenas um meio que deve facilitar

as atividades socialmente úteis, com uma razoável remuneração no processo. Até o

Economist, durante tantos anos defensor dos “investidores especulativos”, explicita o

dilema: “In fact, the choice hinges on the interests of the economy as a whole. After all, it is

taxpayers and savers who pay for the financial crises”. O relatório cita ainda James Tobin:

“I suspect we are throwing more and more of our resources, including the cream of our

youth, into financial activities remote from the production of goods and services, into

activities that generate high private rewards disproportionate to their social productivity”.21

É um sistema que gerou um profundo divórcio entre quem contribui produtivamente para a

sociedade e quem é remunerado.

Os lucros financeiros no Brasil

Finalmente, e antes de entrar nas propostas, um comentário sobre a situação particular da

intermediação financeira no Brasil. Basicamente, cinco grupos dominam o mercado. A

ANEFAC, Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis,

apresenta mensalmente a taxa média de juros efetivamente praticada junto ao tomador final,

pessoa física ou pessoa jurídica.22

21 The Economist, A Special Report on the Future of Finance, January 24th 2009, p. 22

22 Ver Pesquisa mensal de juros, http://www.anefac.com.br/m3_preview.asp?cod_pagina=10782&cod_idm=1

15

Taxas de juros setembro/2005 X outubro/2008 - Pessoa Física

Setembro/2005 Outubro/2008

TIPO DE

FINANCIAMENTO

Taxa Mês Taxa Ano Taxa Mês Taxa Ano Queda em

pontos

percentuais

Comércio 6,12% 103,97% 6,34% 109,10% 5,13

Cartão de Crédito 10,30% 224,27% 10,46% 229,96% 5,69

Cheque Especial 8,24% 158,61% 7,93% 149,87% -8,74

CDC Bancos 3,53% 51,63% 3,25% 46,78% -4,85

Emp. Pessoal-Bancos 5,71% 94,71% 5,62% 92,73% -1,98

Emp.Pessoal

Financeiras

11,74% 278,88% 11,62% 274,03% -4,85

TAXA MÉDIA 7,61% 141,12% 7,54% 139,24% -1,88

Fonte: ANEFAC, Pesquisa de Juros

Constatamos aqui taxas de juros da ordem de 140% na média geral, atingindo níveis

estratosféricos no cheque especial, no cartão e nos empréstimos pessoais das financeiras.

Estes juros são da ordem de 6 a 7% (ao ano) no máximo na Europa.

Taxas de juros setembro/2005 X outubro/2008 - Pessoa Jurídica

Setembro/2005 Outubro/2008

TIPO DE

FINANCIAMENTO

Taxa Mês Taxa Ano Taxa Mês Taxa Ano Queda em

pontos

percentuais

Capital de giro 4,27% 65,16% 4,18% 63,46% -1,70

Desc. De duplicatas 3,81% 56,63% 3,78% 56,09% -0,54

Desconto de cheques 4,01% 60,29% 4,06% 61,22% 0,93

Conta garantida 5,63% 92,95% 5,68% 94,05% 1,10

TAXA MÉDIA 4,43% 68,23% 4,43% 68,23% 0

Fonte: ANEFAC, Pesquisa de Juros

Para pessoa jurídica, os juros anuais se mantêm em 68% durante 3 anos, sendo que os juros

correspondentes na Europa seriam da ordem de 3% ao ano. É importante lembrar que neste

período a taxa básica de juros Selic caiu de 19,75% para 13,75%, ou seja, 6 pontos

percentuais (queda de 30,4%), sem que houvesse redução da taxa média para pessoa

jurídica ou para pessoa física no mercado financeiro.

A situação aqui é completamente diferente dos bancos dos países desenvolvidos, que

trabalham com juros baixos e alavancagem altíssima. Essencial para nós, é que sustentar no

Brasil juros que são da ordem de mil por centos relativamente aos juros praticados

internacionalmente, só pode ser realizado mediante uma cartelização de fato. Para dar um

16

exemplo, o Banco Real (Santander Brasil) cobra 146% no cheque especial no Brasil,

enquanto o Santander na Espanha cobra 0% (zero por cento) por seis meses até cinco mil

euros. Os ganhos dos grupos estrangeiros no Brasil sustentam assim as matrizes.

Lembremos ainda que a Anefac apresenta apenas os juros, sem mencionar as tarifas

cobradas. Os resultados são os spreads fantásticos e lucros impressionantes que o setor

apresenta, sobre um volume de crédito no conjunto bastante limitado (39% do PIB) para

uma economia como o Brasil. A intermediação financeira tornou-se assim um fator central

do chamado “custo Brasil”, e um vetor central da concentração de renda, e portanto de

travamento dos processos produtivos. Os lucros são tão impressionantes, que ao abrigo

deste cartel mesmo grupos de comércio, em vez de se concentrar em prestar bons serviços

comerciais, hoje se concentram na intermediação financeira.23

No período 2001-2008 menos da metade dos ganhos de produtividade do trabalho foi

repassada ao trabalhador. A relação desigual entre o aumento de produtividade do trabalho

e a remuneração (CUT – Custo Unitário do Trabalho) aparece claramente na pesquisa do

IBGE e nos comentários do IPEA. 24

A Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física do IBGE indica, por exemplo, que entre 2001 e

2008, houve aumento de produção física da indústria brasileira na ordem de 28,1%, com ganhos de

produtividade do trabalhador de 22,6%. A folha de pagamento por trabalhador, em contrapartida,

cresceu, em termos reais, 10,5% no mesmo período de tempo. Por conta disso, o Custo Unitário do

Trabalho (CUT) – entendido como a razão entre o rendimento real médio por trabalhador ocupado e

a produtividade – apresentou queda de 10,2% no mesmo período de tempo. Noutras palavras, a

remuneração dos trabalhadores não tem acompanhado plenamente os ganhos de produtividade da

indústria brasileira. Se não são os salários a incorporar completamente os ganhos de produtividade,

não podem ser percebidos sinais de pressão sobre os custos de produção, o que poderia sugerir

alguma pressão inflacionária. Sem o repasse pleno da produtividade aos trabalhadores, estimula a

expansão do estrato superior na distribuição de renda no Brasil.

23 Segundo pesquisa industrial divulgada pelo O Estado de S. Paulo “na média entre outubro e dezembro,

período mais agudo da crise mundial, que fez subir o custo dos financiamentos, os desembolsos para

pagamentos de juros foram 11% superiores aos gastos com salários”. Pesquisa da Federação das Indústrias do

Estado de São Paulo (Fiesp) sobre os gastos da indústria brasileira com pagamentos de juros (O Estado de S.

Paulo, 02/02/09, pesquisa completa disponível em

http://www.fiesp.com.br/competitividade/downloads/FIESP_Custo_Capital_Competitividade_090130.pdf). O

lucro de um grupo, o Bradesco, foi de 7,6 bilhões de reais em 2008, quanto o orçamento do Programa Bolsa

Família, que atinge 48 milhões de pessoas, é de 11 bilhões. O “assistencialismo”, evidentemente, não é bem

onde se comenta. Até uma pessoa tão pouco suspeita de proximidades com a esquerda como Marcos Cintra,

clama contra o cartel de bancos comerciais no Brasil e os spreads escandalosos. (It’s the Spread, Stupid –

Folha de São Paulo 2 de fevereiro de 2009), p.3 – Para os não familiarizados, vale lembrar que a formação do

cartel significa que todos praticam juros e tarifas semelhantes, e que portanto não temos escolha. Trata-se

assim de um imposto privado, e na medida em que cartel é crime, trata-se tecnicamente de crime contra a

ordem econômica. A maravilha, é que não há culpado. O culpado é um ente invisível chamado

misteriosamente de “mercado”.

24 IPEA – Pobreza e riqueza no Brasil metropolitano – n.7, agosto de 2008, p. 11 – Documento disponível

em http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/comunicado_presidencia/ReducaoPobreza_CPresi7.pdf

17

Esse processo apenas acelera uma tendência histórica. Junta-se aqui o efeito concentrador

da intermediação financeira, com o não repasse dos aumentos da produtividade do trabalho

aos trabalhadores No caso brasileiro, a queda da participação da remuneração do trabalho

na renda nacional, durante os anos 1995 - 2004 foi da ordem de 45% para 35%, o que

representa ao mesmo tempo uma queda mais acelerada do que a verificada nos países

desenvolvidos vistos anteriormente e um nível absurdamente baixo.

O crescimento econômico, em particular na segunda gestão Lula, permitiu simultaneamente

o aumento da renda dos estratos superiores e a melhoria muito significativa do rendimento

dos trabalhadores. O salário mínimo na gestão Lula teve um aumento real de 46,05%, o que

atinge cerca de 25 milhões de trabalhadores e 18 milhões de aposentados. Em 2009, a partir

de fevereiro, o salário mínimo passou para 465 reais (160 euros). De certa forma, o Brasil

já adotou uma política anticíclica antes da crise ao expandir o consumo na base da

sociedade. Mas sejamos realistas: o ponto de partida é muito baixo e a desigualdade

herdada é extrema. Uma política keynesiana ainda terá de subir vários degraus no Brasil.25

O Brasil tem evidentemente um grande trunfo na mão, que é a possibilidade de usar os

bancos oficiais para reintroduzir concorrência no mercado cartelizado, permitindo ao

mesmo tempo dinamizar a economia ao estimular consumo e investimento. Este

mecanismo, ao que tudo indica, está sendo progressivamente implantado. O sistema de

intermediação financeira dos grandes grupos terá de evoluir para mecanismos de

25 Ver dados em http://www.brasil.gov.br/noticias/em_questao/.questao/eq762

18

concorrência, inclusive porque a cartelização é ilegal. Um segundo grande trunfo é a

possibilidade de reduzir a taxa Selic, o que tem um duplo impacto: ao reduzir-se os ganhos

dos rentistas que aplicam em titulos do governo, essencialmente bancos, os intermediários

financeiros se vêem obrigados a buscar alternativas no setor produtivo, medida equivalente

a injetar dinheiro na economia real; e ao reduzir os juros sobre a dívida pública, libera

recursos para o investimento público. Lembremos que com uma dívida pública da ordem de

1,3 trilhão de reais, e um serviço da dívida (juros e principal) da ordem de 180 bilhões de

reais por ano, trata-se de um instrumento poderoso, ainda que de aplicação necessariamente

progressiva.26

No curto prazo, no entanto, parece claro que o funcionamento protegido da concorrência de

um grupo de gigantes com lucros imensos gera, paradoxalmente, uma situação mais estável

do que a da sobre-exposição dos grupos financeiros dos países desenvolvidos. O problema

aqui é de que em vez de termos intermediários financeiros que facilitam as iniciativas

econômicas, temos atravessadores que as encarecem. A intermediação financeira tornou-se

aqui num dos principais instrumentos de concentração de renda e de desequilíbrios sociais.

No geral tanto nos países desenvolvidos, como no Brasil, cada vez mais os lucros

corporativos estão alimentando atravessadores financeiros, gerando uma ampla classe de

rentistas. A questão, vista do ponto de vista de “quem paga”, tende a deslocar-se, na visão

das pessoas, para pensar melhor em “a quem pagamos”. Trata-se de poupanças da

população. Este ponto é essencial, pois tratando-se de um cassino gerado com dinheiro da

população, proteger os especuladores pode legitimamente ser apresentado como uma

proteção à própria população, pois é o dinheiro dela que está em risco. Isto gera,

evidentemente, uma posição de chantagem, e uma correspondente posição de poder. E

permite deixar de lado o que deve ser a questão central da canalização das poupanças: não

se os intermediários estão ganhando ou perdendo dinheiro, mas a que agentes econômicos,

a que atividades, a que tipo de desenvolvimento e com que custos ambientais devem servir

estas poupanças. Bastará assegurar que não quebre um sistema cujo produto final não está

servindo?

Para o Brasil, paradoxalmente, a crise financeira pode representar uma oportunidade.

Somos o país da desigualdade. A metade da população ainda precisa ter acesso ao consumo

básico diversificado, incluindo nisto não só o alimento e outros bens de primeira

necessidade, mas também o consumo de bens sociais como saúde e educação, de

infraestruturas sociais como redes de saneamento e redes de banda larga de comunicação e

assim por diante. Em outros termos, uma expansão dos programas, em grande parte já

desenvolvidos pelo governo, tem a virtude de ao mesmo tempo começar a resgatar a nossa

imensa dívida social, e de dinamizar, através da maior demanda agregada (consumo

popular e investimento público), as próprias atividades empresariais. Reorientar as nossas

capacidades de financiamento cada vez mais neste sentido – ainda que reduzindo a

dimensão do rentismo financeiro e das atividades especulativas – faz todo sentido.

26 Essas propostas são amplamente conhecidas, mas travadas por um argumento oportunista: os juros elevados

nos protegeriam da inflação. O que não se faz pelo povo. Para a refutação do argumento, ver trabalhos de Paul

Singer, Amir Khair, e o nosso Democracia Econômica (Ed. Vozes, 2008)

19

As medidas propostas: salvar o sistema ou transformá-lo?

Naturalmente, dado o peso político do sistema especulativo mundial engendrado nas

últimas décadas, predomina na mídia e nas tomadas públicas de posição a busca de um

simples conserto, um “arreglo” como dizem os hispânicos, que permita aos especuladores

voltar aos bons dias. Inclusive, quase não se encontram explicações sobre os mecanismos: a

mídia se concentra no que se tem chamado de “economia de elevador”, jogando

diariamente cifras sobre porcentagens de ganhos e perdas, e entrevistando magos que

decifram o futuro dos altos e baixos, sobre os quais em geral não têm a mínima idéia. A

palavra chave, que protege o consultor, é sempre que “o mercado está nervoso”, o que

implica cientificamente que tudo é possível.

Mas a realidade é que algumas coisas mudaram de forma irremediável, constituindo

deslocamentos sistêmicos. Primeiro, há o fato que a credibilidade dos Estados Unidos e o

seu papel de liderança planetária, já fortemente abalados pelos golpes desferidos contra as

Nações Unidas, as guerras irresponsáveis, o uso escancarado da tortura, e o desprezo geral

pela concertação internacional – afundaram de maneira impressionante. Houve um

deslocamento geopolítico sistêmico em direção ao mundo multipolar.

Segundo, se já depois do calote de Nixon em 1971, com a desvinculação do dólar da sua

cobertura em ouro, já se falava na morte do sistema Bretton Woods, hoje a visão torna-se

muito mais ampla, pois houve uma falência generalizada dos mecanismos de regulação que

se acreditava serem funcionais. Em particular, a regulação financeira havia sido montada

como instrumento destinado a impedir o comportamento irresponsável por parte dos países

em desenvolvimento, e a crise surge nos países que se propunham como modelo. Não há

instrumentos de regulação multilateral para esta situação. A imagem de um Bretton Woods

II, no sentido de uma reformulação sistêmica dos processos regulatórios e das regras do

jogo, está no horizonte.

Um terceiro ponto importante, é que diferentemente da crise de 1929, em que cada país se

recolheu em posturas defensivas para lamber as suas feridas em mercados protegidos, desta

vez há uma atitude concertada e multilateral para se enfrentar a crise. A rapidez com a qual

se levantaram recursos para salvar instituições cuja credibilidade é baixíssima, mas cujo

poder de estrago é imenso, aponta para uma nova cultura de construção de políticas

multilaterais, mas também para o imenso poder político dos especuladores, que tudo farão

para conter mudanças estruturais.

Quarto, e particularmente importante para nós, com a reunião do G20 em 15 de novembro

de 2008, há pela primeira vez um reconhecimento planetário de que o mundo dito “em

desenvolvimento” existe não apenas como fonte de matérias primas e de problemas, mas

como fator essencial da construção de soluções.27

27 A composição do Comité de Basileia de Supervisão de Bancos é eloquente: “The Basel Committee on

Banking Supervision provides a forum for regular cooperation on banking supervisory matters. It seeks to

promote and strengthen supervisory and risk management practices globally. The Committee's members come

from Belgium, Canada, France, Germany, Italy, Japan, Luxembourg, the Netherlands, Spain, Sweden,

Switzerland, United Kingdom and United States.” www.bis.org/press/p081120.htm A era colonial não está

tão longe.

20

Finalmente, o abalo planetário da confiança nas instituições financeiras não tem volta, pois

são milhões os que foram prejudicados nas suas poupanças ou aposentadorias, e circulam

em todos os meios de comunicação as contabilidades duplas, o uso dos paraísos fiscais para

fraudar tanto o público como as obrigações fiscais, a falsificação dos dados sobre a situação

real das instituições, o compadrio que preside às atividades das agências de avaliação de

risco. No caso da Enron, depois da WorldCom e da Parmalat, houve uma ofensiva de

propaganda em defesa do sistema, sugerindo a imagem das maçãs podres (bad apples) num

sistema saudável. Hoje, esta imagem mudou, e a reconstrução da confiança só se dará no

quadro de mudanças sistêmicas. São muitas bad apples. Esta mudança de contexto ainda

não chegou a Basileia.28

Não é o caso aqui de entrar no detalhe da enxurrada de propostas que surgem, veremos

apenas os rumos gerais. É interessante consultar as 47 propostas elencadas na sequência da

reunião do G20 em novembro de 2008, a bateria de sugestões desenvolvidas por Barack

Obama para reequilibrar a economia norte-americana (indo bastante além do mercado

financeiro), a consulta organizada por Eichengreen a um conjunto de especialistas dias

antes da reunião do G20, as propostas preliminares do Comitê de Supervisão Bancária de

Basileia. Trata-se por enquanto de propostas, não mais do que isto.

Da mesma forma como Bretton Woods exigiu dois anos de preparação por equipes

técnicas, não se fará uma reformulação real em pouco tempo. Trata-se, até agora, de uma

ampla lista de idéias. E não devemos perder de vista que os responsáveis (e beneficiários)

do sistema jogarão a carta do tempo, esperando que a crise amaine para que nada mude.

Elencamos a seguir alguns elementos destas primeiras propostas, sabendo que ainda

carecem do arcabouço técnico de sua sistematização e do poder político de sua

implementação.

Agrupando as propostas segundo os seus eixos de impacto, as mais significativas vêm na

área da governança, já que claramente ninguém estava governando coisa alguma.29 A

principal questão envolve a existência ou não de um instrumento supranacional de

regulação financeira global, na linha de uma World Financial Organization (WFO) análoga

à Organização Mundial do Comércio (WTO na sigla inglesa). Dado o caráter internacional

dos processos especulativos, a sua evolução para sistemas racionais de canalização de

capitais em função de necessidades reais do desenvolvimento terá de alguma forma ser

coordenada ao nível mundial. Na reunião do G20, qualquer opção neste sentido foi vetada

pelos Estados Unidos, que colocaram nas resoluções a afirmação de que os problemas serão

resolvidos antes de tudo pelos “reguladores nacionais”. Os Estados Unidos assim

28 O PressRelease do presidente do Comité: Mr Wellink emphasised that the Committee's efforts will be

"carried out as part of a considered process that balances the objective of maintaining a vibrant, competitive

banking sector in good times against the need to enhance the sector's resilience in future periods of financial

and economic stress". Trata-se portanto de manter um sistema visto como “vibrante e competitivo”, com

algumas salvaguardas. www.bis.org/press/p081120.htm

29 O lema do BIS de Basileia comove: “The BIS is an international organization that fosters cooperation

among central banks and other agencies in pursuit of monetary and financial stability”.

21

preservam a sua capacidade de agir mundialmente, mas de se regularem nacionalmente.

Com esta visão, evidentemente, simplesmente não haverá regulação. 30

Sobra então a cosmética relativa às organizações multilaterais existentes. Isto envolve a

capitalização do Fundo Monetário Internacional, cujos recursos, da ordem de 250 bilhões

de dólares, são ridículos frente à dimensão dos rombos financeiros gerados pelos bancos.

Propõe-se igualmente a redistribuição dos votos no Fundo, retirando o poder de veto dos

EUA. O BIS deveria também passar a ser administrado de forma mais ampla e receber

maiores poderes e assim por diante. Continuamos, no entanto, no quadro destas propostas,

com o dilema central: a finança se tornou mundial, mas não há nada que se pareça com um

banco central mundial. Fluxos mundiais versus regulação nacional; processos globais

versus gestão fragmentada. Who’s in charge?

Neste plano tem sido ainda colocado um argumento central: com a regulação fragmentada

atual, qualquer país que passe a exercer algum controle sobre o movimento de entrada e

saída de capitais, visando assegurar o seu uso produtivo e evitar os movimentos prócíclicos,

passa imediatamente a ser discriminado nos movimentos, tanto pelos investidores

institucionais como pelas agências de risco. A regulação, nestas condições, ou é planetária

ou ineficiente.

Os conteúdos da regulação reforçada proposta são relativamente óbvios, e não muito

misteriosos: trata-se antes de tudo de limitar a alavancagem, que atingiu conforme vimos

níveis absurdos. Trata-se também de assegurar a transparência dos processos, e de

organizar o acesso às informações não apenas individualmente, mas em termos

sistêmicos.31 Uma exigência igualmente óbvia é o controle da dupla contabilidade, que se

generalizou, bem como o controle dos paraísos fiscais e das fraudes associadas ao “offshore”

financeiro. As agências de avaliação de risco ganhariam um quadro regulatório

(“regulatory framework”) e não poderiam ser financiadas por quem avaliam.32

Este tipo de recomendações constitui uma visão de que o sistema deve se manter, mas a sua

governança deve melhorar. O problema básico, naturalmente, é o das próprias condições da

governança. O elefante no meio da sala – o que não dá para não ver, e que é grande demais

para mover – é o pequeno clube de gigantes mundiais que maneja todo este processo, que

desencadeou o caos e que chamamos por alguma razão misteriosa de “forças de mercado”.

A delicadeza com que se trata este grupo comove. Na declaração do G20 de 15 de

novembro, merece apenas três linhas: “As instituições financeiras também (!) devem arcar

com a sua parte da responsabilidade na confusão (turmoil), e deveriam fazer a sua parte

30 “We will implement reforms that will strengthen financial markets and regulatory regimes so as to avoid

future crises. Regulation is first and foremost the responsibility of national regulators who constitute the first

line of defense against market instability.” (Declaração final do G20, ponto 8 -

www.nytimes.com/2008/11/16/washington/summit-text.html )

31 Vários estudos preliminares apontam para o fato que as instituiçoes financeiras faziam o seu cálculo de

risco individualmente, mas considerando que o ambiente externo se manteria estável. Assim, ninguém fazia a

avaliação de risco sistêmico, nem organizava informações a respeito. Stijn Claessens, do FMI, se refere ao

fato que o próprio sistema de informações é inadequado: “The crisis has highlighted the size of information

gaps we face, both nationally and internationally. More and better information is needed if markets and

authorities are to better assess the build-up of systemic risk. Addressing this requires a review of rules on

transparency, disclosure and reporting.” - What G20 Leaders must do…p. 30

32 Willem Buiter, da London School of Economics, sugere: “Make it impossible to combine rating activities

with other profit-seeking activities in the same legal entity” – What G20 leaders must do... p. 19

22

para superá-la, inclusive reconhecendo as perdas, melhorando a informação (disclosure) e

fortalecendo a sua governança e práticas de gestão de risco”.33

Claessens é dos poucos que coloca com clareza a necessidade de “um novo regime para os

grandes bancos internacionais”: “One internally consistent approach, perhaps the only one,

is to establish a separate regime for large, internationally active financial institutions. This

would mean an ‘International Bank Charter” with accompanying regulation and

supervision, liquidity support, remedial actions as well as post-insolvency recapitalisation

fund in case things go wrong. The idea is that a separate international college of

supervisors, with professionals recruited internationally, would regulate, license and

supervise these institutions”34 Em troca destas mudanças, os grupos poderiam “agir

livremente”.

No conjunto, é óbvio que um sistema onde um país detém o poder de emitir uma moeda

cujo uso é internacional, é estruturalmente desequilibrado. Qualquer proposta de se regular

gigantes planetários sem haver um sistema supranacional efetivo é estruturalmente ineficaz.

Na realidade, estamos aqui no reino do “wishful thinking”, de propostas destinadas a

negociar a transição até sairmos magicamente do fundo do poço, para saudar a volta dos

happy days e esperar a próxima crise.35

A grande incógnita neste início de 2009, é o próximo presidente dos Estados Unidos, que

recebe um país profundamente desmoralizado e caótico nos planos político, militar,

econômico e sobretudo ético. O caos gerado nesta presidência Bush, em que o poder de fato

foi exercido não por um presidente, mas por corporações, políticos corruptos e

fundamentalistas religiosos, abre espaço para mudanças profundas. Se as forças que estão

se agregando em torno a Barack Obama terão dinamismo suficiente para gerar mudanças

institucionais, é um ponto de interrogação, mas em todo caso é um potencial e uma

oportunidade. Aliás a crise, ao cimentar a eleição de Obama, algo de positivo já trouxe.

A convergência das crises: um outro desenvolvimento, outras instituições

Tivemos portanto de imediato numerosas propostas de consertos do sistema, sem mexer na

sua lógica. A intenção é claramente mostrar que no futuro será diferente, pois teremos

governos severos e austeros que cobrarão resultados. Haverá postura e ética no sistema

reformado. E os grupos responsáveis por tudo isto, que aliás aparecem tão pouco na mídia

quando os dias são bons, passarão a se comportar de maneira socialmente responsável. As

propostas surgem mesmo sem muita base institucional ou elaboração técnica, porque uma

massa de poupadores no planeta está sendo atingida diretamente – da classe média para

33 Statement from G-20 Summit, 15 november 2008, ponto 8.

34 Stijn Claessens, idem, p. 31

35 As propostas no Fórum de Davos 2009 mostram essa falta total de realismo frente às novas dinâmicas, com

um pequeno catecismo chamado “5I Framework” (Insight, Information, Incentives, Investments, Institutions),

na linha das bobagens tipo 5 S e semelhantes que ensinamos lamentavelmente nas ciências de gestão. O lema

do World Economic Forum nos aparece como bastante cínico: “Committed to Improving the State of the

World”. WEF, Global Risks 2009, p. 14 – http://www.marsh.pt/documents/globalrisks2009.pdf

As visões sistematizadas no Fórum Social Mundial 2009 hoje aparecem com toda a sua dimensão de bom

senso

23

cima – pelo derretimento das suas poupanças e das suas esperanças de aposentadoria.36 E

na medida em que o caos financeiro gerado pelos especuladores está atingindo os

produtores efetivos de bens e serviços, é o povo em geral que passa a sofrer as

consequências. Dentro do sistema, há uma clara consciência da volatilidade política da

situação. Propostas, em consequência, surgem rapidamente. A sua implementação – a não

ser os trilhões demandados pelos grandes grupos – obedecerá a outros ritmos.

O caos sistêmico gerado e a clara perda de governança econômica, frente ao desespero de

uma imensa massa de pessoas prejudicadas, estão gerando um novo clima político. Estão se

abrindo possibilidades de se colocar na mesa propostas mais amplas no sentido de um

desenvolvimento que tenha pé e cabeça. Mais precisamente, gera-se um espaço para que

surjam alternativas de desenvolvimento, e para que – não parece um objetivo exorbitante –

o nosso próprio dinheiro sirva para fins úteis. Não se deve sonhar excessivamente – muito

do espaço político gerado dependerá da profundidade da crise – e esta é uma incógnita. Mas

é importante sim organizar alternativas sistêmicas, pois o que estamos sofrendo é uma crise

estrutural de curto e médio prazos dentro de um quadro de crises mais amplas que se

avizinham, particularmente nos planos social, climático, energético, alimentar, de água e

outros.

As propostas que estão surgindo vêm de pessoas como Jeffrey Sachs, que propõe que o uso

dos recursos financeiros seja formalmente vinculado à construção das Metas do Milênio.

Stiglitz trabalha com uma visão de fazer os objetivos de qualidade de vida nortearem a

alocação de recursos, e não apenas o chamado Produto Interno Bruto. Hazel Henderson

resgata a importância da taxa Tobin, que cobraria um imposto sobre transações

internacionais especulativas para financiar um desenvolvimento socialmente mais justo.

Ignacy Sachs trabalha com a visão de uma convergência da crise financeira com a crise

energética e a necessidade de repensarmos de forma sistêmica o nosso modelo de

desenvolvimento. Não se trata aqui de um idealismo excessivo, e sim de uma apreciação

fria dos nossos desafios.

O gráfico que apresentamos abaixo constitui um resumo de macro-tendências, num período

histórico de 1750 até a atualidade. As escalas tiveram de ser compatibilizadas, e algumas

das linhas representam processos para os quais temos cifras apenas mais recentes. Mas no

conjunto, o gráfico permite juntar áreas tradicionalmente estudadas separadamente, como

demografia, clima, produção de carros, consumo de papel, apropriação da água, liquidação

da vida nos mares e outros. A sinergia do processo torna-se óbvia, como se torna óbvia a

dimensão dos desafios ambientais. 37

36 Com bom humor, o Economist de 6-12 de dezembro de 2008 mostra na capa um imenso buraco negro, e a

manchete “Where have all your savings gone” (para onde foram todas as suas poupanças). O título é uma

brincadeira com a música “Where have all the flowers gone” cantada por pessoas alegres em 1968. Mas na

realidade, é a poupança de uma imensa massa de pessoas que foi para o buraco, e estas pessoas não estão nada

alegres. Na realidade, não desapareceu riqueza, o mundo continua a contar com o mesmo número de casas, de

carros etc. É o direito sobre estas casas e outros bens que mudou de mãos. Esta apropriação de riquezas por

quem não as produziu, e inclusive desorganiza os processos produtivos, constutui um dos elementos centrais

da deformação do sistema.

37 New Scientist, October 18, 2008, p. 40; para acessar o gráfico online veja http://dowbor.org/ar/ns.doc; o

dossiê completo pode ser consultado em www.newscientist.com/opinion ; os quadros de apoio e fontes

primárias podem ser vistos em http://dowbor.org/ar/08_ns_overconsumption.pdf; contribuiram para o dossiê

24

O comentário do New Scientist sobre estas macrotendências foca diretamente o nosso

próprio conceito de crescimento econômico:

The science tells us that if we are serious about saving the Earth, we must reshape our economy. This,

of course, is economic heresy. Growth to most economists is as essential as the air we breathe: it is,

they claim, the only force capable of lifting the poor out of poverty, feeding the world’s growing

population, meeting the costs of rising public spending and stimulating technological development –

not to mention funding increasingly expensive lifestyles. They see no limits to growth, ever. In recent

weeks it has become clear just how terrified governments are of anything that threatens growth, as they

pour billions of public money into a failing financial system. Amid the confusion, any challenge to the

growth dogma needs to be looked at very carefully. This one is built on a long standing question: how

do we square Earth’s finite resources with the fact that as the economy grows, the amount of natural

resources needed to sustain that activity must grow too? It has taken all of human history for the

economy to reach its current size. On current form, it will take just two decades to double.

Fonte: New Scientist (18 October 2008, p 40).

Estamos aqui entre pessoas que entenderam que se trata de um sistema que sem dúvida

deixou de funcionar, e que está portanto em crise, mas que sobretudo é um sistema que

quando funciona é inviável. As soluções têm de ser mais amplas. Esta visão mais ampla

pode – e apenas pode – viabilizar mudanças mais profundas.

A crise financeira tem esta particularidade de ser pouco transparente em termos de

dinâmicas e de soluções, para a população em geral. Não é muito viável se colocar na rua

grandes manifestações relativas à mudança dos mecanismos de regulação do BIS de

Tim Jackson, David Suzuki, Jo Marchant, Herman Daly, Gus Speth, Liz Else, Andrew Simms, Suzan George

e Kate Soper.

25

Basileia. A grande defesa do sistema absurdo de especulação que enfrentamos, é que

pouquíssimas pessoas entendem o que se passa. Mas se os mecanismos são obscuros, os

impactos são visíveis, e estes sim podem mobilizar.

A perda de empregos por parte de gente que estava cumprindo bem as suas funções

produtivas, porque uns irresponsáveis gostam de ganhar dinheiro com poupança dos outros,

gera indignação. A perda da base de sobrevivência de cerca de 300 milhões de pessoas no

planeta que viviam de pesca artesanal, porque grandes empresas de pesca oceânica estão

acabando com a vida nos mares, está gerando outra faixa de irritações políticas. O caos

climático está trazendo as primeiras amostras do seu potencial, e está gerando outros

desesperos, além de tomadas mais amplas de consciência. A contaminação da água doce

por excessos de quimização, insuficiências clamorosas de saneamento, e esgotamento de

lençóis freáticos, está levando a um conjunto de crises setoriais que envolvem desde a

redução da pesca até à tragédia de 1,8 milhão de crianças que morrem anualmente por não

ter acesso à água limpa, e à ameaça de regiões rurais que dependiam de uma segunda safra

com irrigação.

Não é o caso aqui de fazer um elenco das nossas tragédias. Mas o fato é que, com um

pouco de recuo, já não são crises setoriais, e representam sim uma crise mais ampla de

governança local, nacional, regional e planetária. Há uma convergência de problemas que

se avolumam, cuja sinergia os torna mais ameaçadores, e cuja raiz comum encontra-se ao

fim e ao cabo no fato que os nossos mecanismos atuais de governança não são suficientes.

Com a globalização, financeirização e oligopolização de grandes eixos de atividades

econômicas, o mercado perde de forma acelerada as suas funções reguladoras. E as

alternativas, particularmente a capacidade de planejamento e de intervenção organizada,

formas participativas e descentralizadas de gestão, gestão em rede e sistemas de parcerias,

estão engatinhando. E o papel central do Estado, obviamente, tem de ser resgatado, nas

numa visão muito mais horizontal e participativa.

Ignacy Sachs resume bem o dilema: que desenvolvimento queremos? E para este

desenvolvimento, que Estado e que mecanismos de regulação são necessários? Não há

como minimizar a dimensão dos desafios. Com 6,7 bilhões de habitantes – e 70 milhões a

mais a cada ano – que buscam um consumo cada vez mais desenfreado, e manejam

tecnologias cada vez mais poderosas, o nosso planeta mostra toda a sua fragilidade. A

questão básica que se coloca para a reformulação do sistema de intermediação financeira é

que é criminoso o desperdício das nossas poupanças e do potencial mundial de

financiamento no cassino global, quando temos desafios sociais e ambientais desta

dimensão e urgência, e que necessitam vitalmente de recursos.

O desperdício de recursos financeiros nas dinâmicas atuais é avassalador. Segundo as

Nações Unidas, “medidos em termos de paridade de poder de compra do ano 2000, o custo

de se liquidar a pobreza extrema – o montante necessário para puxar 1 bilhão de pessoas

para cima da linha de pobreza de $1 por dia – é de $300 bilhões”.38 A realidade é que a

utilidade marginal do dinheiro, em termos de sua capacidade de gerar qualidade de vida,

decresce rapidamente quanto mais se eleva a renda. Em outros termos, quanto mais os

38 “Measured in 2000 purchasing power parity terms, the cost of ending extreme poverty – the amount needed

to lift 1 billion people above the $1 a day poverty line – is $300 billion”. United Nations, Human

Development Report 2005, p. 38. Sobre a renda mínima e a sua universalização, ver os trabalhos de Eduardo

Suplicy, em particular Renda de Cidadania, Cortez/Perseu Abramo, São Paulo, 2006 .

26

recursos são orientados para a baixa renda, maior é a utilidade. Em termos prosaicos,

rendem mais. Assegurar a renda mínima planetária faz todo sentido, é uma forma simples,

com as tecnologias atuais, de multiplicar o valor real dos recursos. Como, além do mais, os

recursos que chegam à base da pirâmide são transformados em demanda efetiva, e não em

especulação, estimulando, portanto, a produção e o emprego, é a própria produtividade

sistêmica dos recursos que aumenta. A solução que permite enfrentar simultaneamente os

dramas sociais, os desafios ambientais e a racionalidade no uso de recursos econômicos

está na resposta organizada às necessidades mais prementes da base da pirâmide. Estamos

vivendo a era do desperdício. É tempo de orientar os recursos para os seus usos mais

produtivos.

As alternativas não serão construídas da noite para o dia. Algumas medidas são óbvias, e já

estão sendo amplamente discutidas: controlar os paraísos fiscais, taxar os movimentos

especulativos, organizar sistemas de controle e regulação sobre os intermediários

financeiros, voltar a separar as atividades propriamente bancárias dos investidores

institucionais, criar sistemas locais de financiamento e assim por diante.

Mas numa visão mais abrangente, temos de estar conscientes de que estamos enfrentando a

construção de uma nova institucionalidade. O planeta não sobrevive – e muito menos o

bípede curiosamente chamado de homo sapiens – sem amplos processos colaborativos,

visão de longo prazo, planejamento e intervenções sistêmicas. O papel do Estado precisa

ser resgatado, já não como socorro de iniciativas corporativas irresponsáveis, mas como

articulador de um desenvolvimento mais justo e mais sustentável, e com forte participação

da sociedade civil organizada.

Um outro mundo não é apenas possível, é necessário. O desafio para o mundo progressista

é aproveitar as janelas de oportunidade que a crise financeira nos abre, para sistematizar

uma visão alternativa. Temos de mostrar que uma outra gestão é possível.

Viável? Lamentavelmente, esta não é a questão. As medidas terão de ser tomadas. O

aquecimento global, por exemplo, está se dando, e a opção de se queremos ou não enfrentálo

não está na mesa, e sim o como. A crise financeira representa apenas uma oportunidade –

e não uma garantia – para organizarmos uma convergência de forças da sociedade

interessadas num desenvolvimento que tenha um mínimo de viabilidade econômica, de

equilíbrio social e de sustentabilidade.

Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de

Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor

de “Democracia Econômica” (Vozes), “O que é poder local” (Brasiliense) e de numerosos estudos sobre

desenvolvimento. Os seus trabalhos estão disponíveis na íntegra, em regime copyleft, em http://dowbor.org

Bloqueio do blog

Caros leitores e seguidores, tenho o dever de informá-los que as postagens nesse blog estavam paralisadas devido a um problema técnico detectado a pouco no sentido de não permitir a visualização das barras de ferramentas necesárias ao acesso das informações postadas e verificadas nesse veículo de informação. A partir de então podemos entender o que havia acontecido e de que forma podemos sanar esse problema, evitando assim, que as informações e conteúdos salvos no sistema não se percam e que tudo aquilo que foi postado durante esse ano possa novamente ser acessado com clareza e a facilidade almejada por quem tem o costume de utilizar essas ferramentas de comunicação e expressão.

Para aqueles que tem o costume ou a prática de nos seguir, principalmente os nossos alunos, aviso do próximo texto inserido no blog como uma chamada as aulas de economia política e mercado de capitais. 

Marcelo Gonçalves Marcelino

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Esse é o capitalismo: uma reflexão acerca do capital e trabalho

Que capitalismo vive no mundo hoje?

escravidão creditícia e expansão destrutiva do capital

O capitalismo é marcado por contradições que não podem se resolver dentro de seus

fundamentos estruturais. Na realidade, o capitalismo se destaca por criar problemas

e não por solucioná-los. Sendo coerente com sua “razão de ser” o capital cria

problemas que não pode enfrentar ampliando e acumulando-os de forma crescente. É um

sistema totalizador e parasitário. Marx encontrava no comunismo o desatar

irreversível dos nós que são criados pelo capitalismo a partir de seu esgotamento

histórico marcado por seu desdobramento mundial, profundas desigualdades,

catástrofes naturais, desemprego e, não menos importante, um processo de

financeirização global, desvanecimento do capitalista industrial, uma rede de

crédito crescentemente ampliada e complexa para “solucionar” suas crises e a

ascensão de auto-organizações do trabalho em massa que coloquem em xeque tanto o

capital como o Estado.

Rosa dizia que o capitalismo só pode avançar enquanto existirem “áreas virgens”

abertas à expansão e acumulação de capital. Toda vez que são “capitalizadas” essas

economias “não-capitalistas” as contradições do capital se potencializam já que se

torna necessário procurar novas áreas de colonização do capital quando elas se

esgotam. Ao invés de resolver suas contradições, cada momento expansivo do capital

rumo às “áreas virgens” aprofunda suas contradições. Por mais que possa prosperar

por certo período, sua tendência expansiva esgota (cada vez mais rápido) as fontes

de sua própria alimentação que já não são suficientes. Aí emerge a crise. As crises

do capitalismo moderno se manifestam tanto como esgotamento como necessidade de

colonizar novas áreas virgens para manter seu movimento de acumulação e expansão.

As crises do capitalismo acompanham seu desenvolvimento pautado tanto na valorização

de capital em detrimento ao trabalho socialmente necessário para a produção de

mercadorias em áreas não-capitalistas como nas crescentes dificuldades da própria

valorização: quanto mais se valoriza, mais o capital encontra entraves a valorização

sendo um imperativo colonizar áreas “desconhecidas” pela lógica do capital. Sem esse

movimento o capitalismo não vive.

Uma das principais áreas que o capitalismo tem se expandindo nos últimos 30 anos é

no terreno do crédito. O capital necessita cada vez mais vender o presente – “não

adie a realização de seu desejo!” – para sobreviver. Com crédito pague depois e

desfrute agora. Obtenha o que quiser quando desejar e não quando ganhar o suficiente

para comprá-las. Não pense no “depois”. Endivide-se agora e atenda prontamente suas

aspirações. Max Weber e seu capitalismo baseado na privação, no gasto com prudência,

nas economias na caderneta de poupança e na paciência para que só após juntar o

suficiente se gaste faz parte de uma época que o próprio capitalismo enterrou e

deixou para os livros de história.

Hoje vivemos numa era que o capitalismo se mantém mediante a “escravidão creditícia”

onde a dívida contraída foi transformada numa fonte permanente de lucros. Quanto

mais fácil adquirir crédito mais difícil é se livrar das dívidas que se amontoam em

nome de “dinheiro barato”. Vende-se crédito das mais diferentes formas imagináveis

ao mesmo tempo em que se estimula que nunca se faça o “pagamento final”. Não estar

devendo não interessa aos bancos. Do ponto de vista daqueles que emprestam dinheiro,

a ausência de débitos é terrível. Os emprestadores atuais não querem seu dinheiro

por inteiro e nem tem prazos pré-fixados ou não-renováveis. Ao contrário, oferecem

mais crédito para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro que

eventualmente se tornará uma nova dívida. O cliente perfeito é aquele que nunca paga

sua dívida inteiramente e, além disso, fica cada vez mais preso em dívidas que

crescem. Às vezes as dívidas podem ser até amortizadas para que se possa pagar

indefinidamente por elas. São dívidas em cima de dívidas que prendem os sujeitos num

círculo vicioso.

A chamada “crise do crédito” nos EUA não foi resultado do insucesso dos bancos. Ao

contrário, foi seu extraordinário sucesso em transformar um incontável número de

seres humanos – homens, mulheres, jovens, velhos – numa “raça de devedores” eternos

numa autoperpetuação do “estar endividado” a medida que fazer mais dívidas é visto

como único instrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas. Nunca foi

tão fácil na história da humanidade ingressar nessa condição assim como escapar dela

jamais foi tão difícil como hoje. Para Zigmunt Bauman, a atual contração do crédito

não é sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustão de mais um pasto. A busca

de novas pastagens terá início imediatamente alimentado, como no passado, pelo

Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos. Novas

“terras virgens” serão encontradas e novos esforços serão feitos para explorá-las,

por bem ou por mal, até o momento em que sua capacidade de engordar os lucros dos

acionistas e as gratificações dos dirigentes for exaurida. A grande questão é saber

quando se esgotará a lista de terras passíveis de “virginização secundária” do

capital e quando as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam,

deixaram de garantir um alívio temporário. De qualquer forma, uma coisa é certa: o

capital nunca irá simplesmente desistir de passar de uma caçada a outra enquanto

conseguir alavancar novas chances de adiar o momento da verdade, mesmo que por pouco

tempo e a qualquer custo (social, econômico, político, energético, bélico, etc.). A

plasticidade infinita da expansão do capital necessita tomar para si aquilo que é

exterior, não importa se é o inconsciente, a natureza, a cidade, o interior dos

corpos, a biodiversidade, biogenética, etc. Tudo que não faz parte de sua lógica é

uma questão de tempo e de luta política. Não é verdade que a legalização da maconha

está sendo colocada em pauta para recolher mais impostos na Califórnia diante do

estado de emergência fiscal e que a privatização de presídios e lixões já é

realidade em diversas áreas do mundo?

Sabemos, desde Marx, que o capital é um giro contínuo que tem como produto o lucro.

Por isso, uma crise decorre do alargamento da capacidade de produção acompanhado

duma relativa restrição dos salários que impõem uma limitação real no poder de

compra disponível para a demanda da produção sempre ampliada. Como conseqüência, os

lucros são comprimidos e necessitam se expandir para outros canais, como o

financeiro. Daí decorre também novas formas de crédito que são desenvolvidas para

perpetuar essa contradição ampliando a escravidão assalariada com a “escravidão

creditícia”.

O capital é auto-reprodução de dinheiro pelo revolucionamento do processo produtivo

de forma sempre ampliada. A primeira formulação de Marx é D-M-D’ que representa a

atividade do capital como auto-expansão. Para Kojin Karatani, Marx localiza como

salto mortale desse processo o momento M-D’, quando é determinado, ou não, se a

mercadoria é vendida para a realização do valor. Sem esse salto mortale a

auto-expansão da produção de capital é impossível. Para escapar desse crítico

momento e continuar o movimento de auto-reprodução, o capital necessita criar um

pacto artificial que presume que a mercadoria já foi vendida. Isso se chama crédito.

Crise, portanto, não é apenas causada pelo curto-circuito da acumulação de capital

devidas as mercadorias que não são vendidas, mas principalmente pela “revelação

forçada” – no momento da liquidação final – que as mercadorias que supostamente

deviam ser vendidas não foram vendidas na realidade. A dificuldade do salto mortale

da mercadoria é solucionado apenas quando é efetuada a venda dela. O pressuposto

para a produção é seu hipotético consumo, sua realização como valor. Na produção o

valor só é criado “em si”. Sem a finalização do processo pelo consumo, essa

potencialidade não se confirma. Portanto, a dialética entre produção e consumo é o

segredo do valor.

Com o desenrolar da desaceleração econômica global desde meados de 1970, nos Estados

Unidos houve uma estagflação nos salários dos trabalhadores. Desde meados de 1970 os

salários médios reais dos trabalhadores dos EUA cessaram de subir depois de sua

ascensão histórica de 1820 a 1970. Ao mesmo tempo, a produtividade do trabalho com

novas maquinarias, pressão social, neoliberalização, novas organizações do trabalho

(toyotismo, terceirização, informalidade, nova divisão internacional do trabalho)

proporcionaram, para os capitalistas, um aumento na extração da mais-valia[1].

Juntamente com esse processo de estagnação salarial houve um aumento progressivo da

“escravidão creditícia” onde, para viver, a tomada crescente de créditos se tornou a

forma de contornar o freio salarial dos trabalhadores e ativar a demanda. Em outras

palavras, sob a atual crise os lucros privados dependem diretamente dos salários

estagnados e, não menos importante, dos empréstimos contraídos pelos trabalhadores

substituindo o aumento dos salários pelo aumento do crédito.

O processo de financeirização trouxe um desvio crescente de fundos da produção e

emprego fazendo com que, progressivamente, a economia global dependesse cada vez

mais da financeirização para o crescimento. Entre 1980 e 1992, por exemplo, a

formação de capital fixo cresceu numa taxa anual de 2,3% enquanto os ativos

financeiros cresceram 6%. O volume diário total de transições financeiras globais em

1983 era de 2,3 bilhões passando, em 2001, para 130 bilhões. Com esses processos

correntes, diversos “produtos derivados” do sistema financeiro começaram a operar na

dívida pública dos EUA de forma crescente. Como conseqüência geral, a atuação do

Estado neoliberal foi voltada para garantir as melhores condições para a expansão

financeira a partir de um receituário voltado para a liberalização financeira

global, seja por meio da ação direta dos países imperialistas ou de suas

instituições internacionais como o Banco Mundial ou o FMI.

Ao mesmo tempo em que o capital produtivo entrou numa dialética em relação ao

capital financeiro, a extração da mais-valia depende cada vez mais de uma dialética

entre os salários e os créditos tomados pelos trabalhadores. Esse processo se

acelerou drasticamente nos EUA nas décadas de 1990 e 2000 estourando na crise

comumente chamada de subprime. Com os bancos necessitando dar mais crédito aos

trabalhadores, muitos deles foram dados com altíssimos riscos. Esse não foi um ato

falho de alguns “bancos irresponsáveis”, mas sim o desdobramento lógico do

aceleramento da dialética entre salário e crédito que se tornou cada vez mais vital

para o crescimento dos lucros financeiros e não-financeiros. Portanto, no centro da

crise nos EUA está a queda do consumo familiar pelas décadas de estagflação salarial

e acumulação de dívidas, na maioria das vezes, facilitada pelas operações de crédito

altamente duvidosas (leia-se fraudentas) pelos bancos. Naturalmente esse processo

teve o Estado como agente ativo. Foi à gestão Clinton que introduziu nos EUA as

hipotecas subprime. Elas tinham como objetivo oferecer crédito a pessoas desprovidas

dos meios de pagar a dívidas assumidas para comprar a casa própria. Foi uma

iniciativa do Estado para incorporar setores da população na “escravidão creditícia”

que até então eram inacessíveis.

A simbiose entre Estado e mercado manifesta-se quando analisamos o papel do crédito

no capitalismo contemporâneo e os mecanismos que são utilizados para garantir sua

expansão. A função do Estado é dupla: a disponibilidade contínua de crédito e as

condições dos consumidores de obtê-lo. A exploração dos consumidores e da força de

trabalho são dois lados da mesma moeda da apropriação e distribuição da mais-valia

no capitalismo contemporâneo. Por isso que a salvação dos acionistas que especulam

sobre o “nível de consumo” das empresas “produtivas” como um objetivo primordial do

Estado demonstra não uma fraqueza do capitalismo. Longe disso estamos presenciando

uma ofensiva das finanças contra a totalidade da classe trabalhadora com o aval do

Estado capitalista.

A fase creditícia da acumulação capitalista está se reestruturando e não se

esgotando terminalmente. Hoje a prosperidade é vendida pelos capitalistas

industriais e financeiros em duas palavras santas: austeridade e crédito[2]. Estado

necessita intervir para recapitalizar as empresas emprestadoras e seus devedores com

o objetivo de garantir a crescente circulação global de crédito. Muito se falou em

“regulamentação” do sistema financeiro para se adequar aos interesses da economia

“real”. Foi um ótimo apaziguador dos ânimos por hora, mas é fundamentalmente pura

retórica. Parafraseando Marx, quem regula os reguladores do sistema financeiro senão

os próprios financistas e seu comitê do Estado? As medidas que os governos tomaram

não buscaram apenas recapitalizar os bancos para deixá-los em condições de ampliar

suas atividades “normais” que, paradoxalmente, são os fundamentos da atual crise?

Não seria exagero algum dizer que o sistema do capital saiu do controle e que, dessa

forma, o horizonte da crise é acumulativa, de longo prazo, com características

endêmicas, simultâneas no mundo e altamente destrutivas. Não é a toa que passamos da

etapa de anunciação de planos de reativação econômica na ordem dos trilhões para

mega-planos de austeridade fiscal articulada pelo Estado (inclusive sob governos

socialdemocratas/reformistas “de esquerda” como na Grécia, Portugal, Espanha, EUA,

etc.) que, endividado pela ajuda “nacionalização da bancarrota capitalista”,

encontra crescentes dificuldades de superar sua crise junto com o mercado efetuando

medidas crônicas contra o trabalho incluído, entre elas, mais financeirização do

capital. Em países como o Brasil isso fica claro.

A partir de julho de 2010 o capitalismo brasileiro entra numa nova fase de sua

crescente inserção nas finanças internacionais. Desde a redemocratização do país

está ocorrendo uma progressiva e crescente abertura do país ao capitalismo

financeiro internacional incentivando a crescente porção deste tipo de capital no

país e seu papel do “crescimento do país”. O governo Lula (iniciado em 2002) foi a

síntese desta transição: presidente sindicalista, herói nacional dos trabalhadores,

a democracia em pessoa, pai dos pobres e mãe dos ricos. Ao mesmo tempo em que

conseguiu suspender a luta de classes no país pela institucionalizanção petista do

Estado elevou a consciência “terceira via fukuyamista” a política nacional e

internacional. Um líder mundial contra a fome e a favor da expansão do capital

financeiro sem precedentes na história nacional[3].

O governo Lula além de aumentar a renda das classes mais baixas para sua entrada no

mundo do consumo também está agilizando formas mais fáceis para a expansão do

crédito. Por exemplo: até julho de 2010 existia uma exclusividade entre a

credenciadora Cielo e a bandeira Visa. Isso acabou, pois representa uma reserva de

mercado que necessita ser colonizada pelo capital. É um novo pasto que, nos países

mais desenvolvidos, está sofrendo um esgotamento profundo. Está se estimulando o

crescimento do setor de cartões de crédito. A novidade inclui a aceitação de

diferentes cartões e de diferentes bandeiras num aumento generalizado da

concorrência. Espera-se que esse mercado cresça cerca de 20% por ano movimentando

R$534,74 bilhões em 2010, com 7,1 bilhões de transações de crédito e débito.

Naturalmente o setor propõe como regulação uma “autoregulação”. Todos ficaram

felizes, inclusive aqueles que anteriormente monopolizaram o setor já que, afinal,

abre-se um novo estágio da expansão do crédito sem precedentes no capitalismo

democrático-petista brasileiro e sua crescente financeirização do crescimento.

Neste estágio de monopolização do crédito no Brasil que, do ponto de vista do

capital, está esgotada, necessita de abertura econômica e política. Só a Cielo está

hoje (julho de 2010) em 1,7 milhões de estabelecimentos e tem filiado uma média de

300 mil novos varejistas por ano. Um representante da empresa de crédito disse

acerca destas mudanças o seguinte: “o crescimento do mercado irá compensar a

possível perda da participação que as credenciadoras venham a ter”. No primeiro

trimestre a Cielo registrou 927,6 milhões de transações com cartões de crédito e

débito, 17,6% mais que no mesmo período no ano anterior, elevando o volume

financeiro das transações para R$ 58,8 bilhões, alta de 23,2%. Analistas acreditam

que em dez anos seja possível dobrar o uso de cartões no país. Hoje ele atinge 22%

do consumo das famílias brasileiras em comparação com 45% nos Estados Unidos. O

principal inimigo para tal empreitada não são as empresas produtivas e sim o cheque

e o dinheiro que somam cerca de 80% dos meios de pagamento. Essa é uma luta

histórica que se encontra em atividade atualmente. Segundo a FEBRABAN, numa última

década, o número de cheques caiu de R$2,6 bilhões em 2000 para R$1,2 bilhões em

2009: uma retração de 53,84%. Inversamente está o uso de cartões. Segundo a ABECS o

número de transições com cartão de crédito aumentou de R$571,1 milhões para R$2,54

bilhões: uma elevação de 344,83%. Com os cartões de débito o aumento foi maior.

Passou de R$206,5 milhões para R$2,41 bilhões no mesmo período, registrando um

aumento de 1.069,9%! As estimativas apontam para um crescimento constante, chegando

a R$2,96 bilhões de transações com cartão de crédito e R$2,84 bilhões com cartão de

débito em 2010. Por mais que o cheque o dinheiro ainda representem 80% das

transições existe uma tendência de progressiva quebra com a expansão do mercado de

crédito.

Já nos EUA antagonismos cada vez mais explosivos emergem. Com uma enorme desilusão

sobre a capacidade de administração com o objetivo de reverter às tendências

negativas em ação no país (desindustrialização, estagnação salarial, queda da classe

média, desemprego, super-endividamento das famílias, das localidades e dos estados,

ampliação dos déficits federais, guerras contra o “terror”, desastre ecológico

incontrolável, apoiando golpes de Estado como no caso de Honduras e ataques

militaristas de Israel, etc.), Obama é cada vez mais (somente) o primeiro presidente

negro dos EUA. Desde 2008 o ambiente de uma grande parte dos norte-americanos e

imigrantes não cessou de se degradar, por mais que ideologia do “pior já passou”

seja praticamente permanente. Como mapeia um relatório do GEAP, o desemprego real

situa-se no mínimo entre 15% e 20% e atinge 30% a 40% nas cidades e regiões mais

afetadas pela crise. Nunca tantos americanos foram dependentes dos selos de

alimentação do governo federal que doravante contribui num nível jamais atingido

para os rendimentos das famílias estadunidenses. Paralelamente, os estados são

obrigados a multiplicar os cortes orçamentais e a suprimir serviços sociais de todo

gênero, agravando ao mesmo tempo o desemprego. E estes fenômenos desenrolam-se no

momento em que o impacto do plano de estímulo econômico da administração Obama é

suposto estar no seu máximo! Esse processo também é acompanhado por uma concentração

de renda crescente: entre 2000 e 2006, nos EUA os 10% mais ricos da população viram

sua renda crescer 32% enquanto a média dos trabalhadores caiu 1,1% em termos reais

sob um crescimento de 18% da economia. No caso do 1% mais rico, o crescimento foi de

203% e, para o 0,1% do mais alto da pirâmide de renda, houve o estrondoso aumento de

425%.
Recentemente a pequena cidade de Maywood, no sul da Califórnia, concebeu uma saída

para resolver sua crise orçamentária. A cidade está dissolvendo sua força policial e

dispensando todos os funcionários do setor público. Isso mesmo. Maywood optou pela

solução mais radical: terceirizar a contratação de todos os serviços públicos,

inclusive os mais básicos. Essa experiência não é um desvio. Ela é, na realidade, o

horizonte último para diversas cidades dos EUA e no mundo. As projeções para o

déficit combinado dos Estados apontam para US$ 112 bilhões em junho de 2011. O

déficit maior é o do Estado de Califórnia com um rombo de cerca de US$ 19 bilhões.

Uma das medidas para elevar as receitas é a legalização da maconha que será

submetida aos cidadãos nas eleições em novembro além da adoção de placas para

automóveis em tecnologia digital capaz de exibir propaganda nos veículos em

movimento (?). A solução é a mesma em todo o mundo: austeridade social e, para quem

pode, buscar por novas colonizações inimagináveis como no “capitalismo de choque”

que ocorreu pela catástrofe do Katrina ou no Haiti. Assim os Estados Unidos terão

que aumentar as taxas e diminuir os gastos, do mesmo modo que Grécia e Espanha além

de ampliar e transformar a “guerra sem fim ao terror” numa amplitude global. Na

Grécia os pacotes de austeridade pretendem reduzir o déficit fiscal em 13,6% do PIB

por meio de cortes de investimentos, redução dos benefícios aos aposentados e

mudanças nas regras trabalhistas que permitiram que as empresas demitam com mais

facilidade. Na Letônia, depois que o parlamento impôs a austeridade em 2008, foi

deposto pelos protestos populares em 2009 – tal como na Islândia. Entretanto a

“saída” foi apenas outro “regime de ocupação” a favor dos interesses da banca

estrangeira. Como disse Michel Husson, está a desdobrar-se uma Guerra Social à

escala global – não a guerra imaginada no século XIX, mas uma guerra das finanças

contra economias inteiras, o imobiliário, o governo, assim como contra o trabalho.

Isto está a acontecer do modo habitualmente lento em que ocorrem as grandes

transições históricas. Mas, tal como em conflitos militares, cada batalha parece

frenética e dispara zig-zags selvagens no mundo das que a criação de dívida tanto

nos setores governamentais como privado bolsas de ações e títulos e nos mercados de

câmbios. É um processo que faz parte da crescente simbiose entre capital e Estado

contra a ampla classe trabalhadora atual.
Lembremos que as dívidas públicas também estimulam a economia. O dispêndio

deficitário pelo governo é uma das respostas keynesianas para recessões, pondo novos

dólares em circulação para criar "procura" (a experiência dos Estados Unidos durante

a Grande Depressão indica que o dispêndio deficitário keynesiano por si próprio não

resolve problemas dos ciclos econômicos mais severos. Não foi o keynesianismo e sim

a Segunda Guerra Mundial que catapultou a economia americana para fora da Grande

Depressão!). Como calculam os companheiros da Montly Review, na década de 1970 a

dívida ativa estadunidense era cerca de 1,5 vezes a dimensão da atividades econômica

anual do país (PIB). Em 1985, era o dobro do PIB. Em 2005, a dívida total dos EUA

era quase 3,5 vezes o PIB do país. Entretanto à medida que a dívida total cresce

cada vez mais, ela parece estar a ter menos efeitos estimulantes sobre a economia.

Embora não haja relacionamento exato entre criação de dívida e crescimento

econômico, na década de 1970 o aumento no PIB era cerca de 60 centavos por cada

dólar acrescido de endividamento. No princípio de 2000 esta proporção havia

diminuído e aproximava-se dos 20 centavos de crescimento de PIB por cada dólar

adicional de endividamento. Juntamente com a explosão de dívida tem-se verificado o

crescimento excepcional das finanças e da especulação financeira na economia

americana — estimulada significativamente pelos níveis de endividamento cada vez

mais elevados. As finanças (bancos, firmas de investimento, companhias de seguros e

consórcios imobiliários) desenvolvem um número sempre crescente de novas maneiras de

tentar fazer dinheiro com dinheiro — D–D' na formulação de Marx. Esses mecanismos se

estendem até o absurdo. Por exemplo: em 1975, 19 milhões de ações foram comerciadas

diariamente na Bolsa de Valores de Nova York. Em 1985 o volume havia alcançado 109

milhões e em 2006, foram 1600 milhões de ações com um valor de mais de US$ 60 mil

milhões. Ainda maior é a comercialização diárias nos mercados mundiais de divisas, a

qual passou de US$ 18 mil milhões por dia em 1977 para a atual média de US$ 1,8

milhão de milhões por dia. Isto significa que a cada vinte e quatro horas do dia o

volume em dólares das divisas comerciadas equivale a todo o PIB mundial anual!
Esse panorama, é claro, tem profundas ligações com a China – o horizonte do

capitalismo hoje. No ano de 2001 não temos apenas os ataques de 11 de setembro e a

declaração de “guerra ao terror sem fim” por George W. Bush. 2001 também é o ano de

entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), que representa o ponto

mais avançado das medidas para fazer do planeta um espaço único de valorização de

capital. A extensão da globalização a Ásia criam efeitos paradoxais: com a

integração da China – e em menor grau da Índia – à economia mundial, a situação dos

trabalhadores tende a piorar. Por quê? A inserção da China – e seus baixos salários

- causa a competição direta entre os trabalhadores atuando como um excesso

estrutural de mão-de-obra incidindo sobre os trabalhadores os ajustes necessários as

novas condições de competição internacional.

A importância do comércio exterior para o crescimento chinês coloca como desafio a
expansão de mercados que, com a crise, tendem a diminuir sua demanda. Os EUA são

hoje o maior mercado da China. Ou a China compensará a desaceleração da demanda

estadunidense voltando-se para outros mercados ou pode chegar um momento, como na

Coréia em 1997, onde os efeitos da superacumulação são imediatamente transformados

em crise aberta. Sabemos a estabilidade macroeconômica mundial encontra-se na China.

Como notou Aglietta, o governo chinês decidiu até esfriar o motor do investimento em

setores como o imobiliário, siderúrgico e automobilístico. Apesar destas medidas

existe uma grande dificuldade em diminuir esses investimentos, principalmente

imobiliário, na construção de infra-estruturas rodoviárias e na construção de outras

fábricas. Essa situação se deve, em parte, as províncias e aos industriais locais

que buscam afirmar sua autonomia diante do poder central.

Os rumores sobre a desaceleração da economia chinesa junto com a piora da

“confiança” do consumidor nos EUA e os tropeços do euro estão causando espasmos nas

bolsas de todo o mundo. O temor de um súbito resfriamento da economia chinesa e seus

desdobramentos sobre a importação de commodities está derrubando as cotações de

produtos como petróleo e metais, com reflexo direto nas ações de companhias

domésticas ligadas a esses setores. E daí que hoje estamos vendo um crescente número

de problemas que não tem solução senão, novamente, a economia da guerra, o estado de

emergência fiscal, a ofensiva do capital financeiro contra os trabalhadores e, não

menos importante, o renascimento da luta de classes sob novas bases sociais,

organizacionais e políticas com um horizonte amplo e abrangente para além do

capital.

Fernando Marcelino

[1] O estado de exceção permanente encontra-se, entre outros, no mundo do trabalho

com as práticas just-in-time sob a forma de autocontrole do trabalhador onde, se

desdobrando em múltiplas dimensões, trazem a novidade histórica do período

toyotista: as empresas envolvem os trabalhadores no just-in-time e, ao mesmo tempo,

os trabalhadores são envolvidos pela empresa com as práticas just-in-time. Baseada

numa “aposta da ética individual” se produz uma moral baseada exclusivamente na

realização do indivíduo em detrimento dos interesses coletivos, buscando um

engajamento dos recursos subjetivos do trabalhador a recurso da produtividade da

empresa baseada num novo tipo de vínculo social. O outro lado do just-in-time é a

redução de estoques e procuras organizando as funções segundo a lógica ditada pela

demanda do mercado.



[2] Essa etapa do desenvolvimento do capital, muito bem pensada por Marx, apresenta

uma nova dimensão política da luta entre o campo industrial produtivo e o campo

financeiro. A novidade histórica da financeirização global é que, no mercado

financeiro, não existe luta de classes já que “confrontam-se apenas emprestadores e

prestadores. Nesse campo, a mercadoria tem a forma invariável de dinheiro,

desvanecendo todas as figuras particulares do capital de produção e circulação em

que se aplica – “passa o capital a existir na figura que não se diferencia, do valor

autônomo, sempre igual a si mesmo – o dinheiro. Anula-se a concorrência entre

diversos ramos, procurando todos conjuntamente tomar dinheiro emprestado”. Para o

capitalista financeiro, o autêntico produto do capital não é a mais-valia, e sim o

lucro menos o juro, a parte que resta do lucro, depois de pagar o juro. A expansão

desse processo global D – D’ iniciou uma transformação na funcionalidade do campo

produtivo que envolve, em última instância, o desaparecimento do capitalista no

processo de produção, agora como figura supérflua e existindo apenas como

funcionário. Essa crescente dimensão do campo financeiro redimensiona o campo

produtivo com o progressivo “fim da representação do capital perante o caráter

antagônico do trabalho”. Como não existe luta de classes entre o capitalista

industrial e financeiro, por mais que tenham estratégias até contrárias formando uma

unidade dialética, isso cria uma confusão política radical na fábrica contemporânea

que cada vez mais necessita da intervenção do Estado para “prosperar”. Fazendo um

adendo, diria que estamos entrando silenciosamente numa nova etapa do capitalismo

mundial. O Estado forte e autoritário está novamente emergindo numa espécie de

“chineização global”. Não como as experiências fascistas do século XX, mas podendo

ser inserido na própria democracia liberal. A democracia poderá continuar

formalmente, mas as decisões chave para a sustentação da economia mundial terão,

cada vez mais, um caráter autoritário. Nos Estados Unidos e em outros países do

mundo, o que aconteceu com a democracia liberal quando foi necessária a “ajuda”

astronômica do Estado diante do derretimento do sistema financeiro no dia 15 de

setembro de 2008? Não foi exatamente o mesmo que George W. Bush fez no 11 de

setembro de 2001? Em poucas semanas, o impossível foi feito: um dinheiro na ordem de

bilhões e bilhões foi aplicado para o salvamento da economia numa espécie de

suspensão da ordem democrática. Um dinheiro irrepresentável foi facilmente aceito

para “reparar a economia” pela suspensão da ordem. Portanto, o tempo democrático é

longo demais para as prioridades da crise atual.



[3] Na leitura de Kojin Karatani Marx entendia a “ditadura da burguesia” da seguinte

forma: é o sufrágio universal, e não uma violência direta que programam regras

sociais, que afirma a divisão estrutural da sociedade entre os detentores dos meios

de produção e os expropriados de seus meios de trabalho. Com o sistema

representativo pessoas de todas as classes participam das eleições. Além disso,

nesse sistema os indivíduos são, pela primeira vez, separados em princípio de todas

relações de classe e relações de produção. Dessa forma, esse mecanismo apaga as

relações de classe ou de dominação pela redução temporária das pessoas em

“indivíduos livres e iguais”. É esse mecanismo que funciona como ditadura da

burguesia onde os indivíduos são livres somente no momento em que as relações

hierárquicas são suspensas.