terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

DIREITO E JUSTIÇA NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS: DIFERENÇAS E ATITUDES DE CLASSE HEGEMÔNICAS

A influência do poder americano no mundo não causa espanto nem tão pouca estranheza, mesmo para aqueles que muitas vezes estão à margem do convívio social no que tange as discussões da práxis política global e sua inserção no debate ideológico. Mas o impacto da american way of life principalmente nas sociedades industriais avançadas teve uma maior repercussão nos países satélites onde a órbita de influência atingiu as estruturas culturais, sociais, políticas e econômicas de forma mais avassaladora.

A semelhança do Brasil com os Estados Unidos passa por modelos de ordem política e econômica, mas não de natureza democrática quando inserimos noções de participação política e cidadania principalmente em relação aos aspectos vinculados aos direitos do homem. Nos Estados Unidos o debate sobre as questões que envolvem a justiça, as leis e o direito na sua amplitude são compartilhados pelos agentes sociais de forma articulada e recíproca, isto é, a noção de direito remete a discussão da manutenção do ordenamento social amplo onde todos reconhecem que o cumprimento de determinadas normas e regras é fundamental na manutenção da democracia e da negociação dos conflitos na esfera pública.

A cultura americana reconhece que o ordenamento jurídico prevê a necessidade de buscar soluções dos conflitos no espaço do direito não apenas como instituição mediadora e sentenciadora, mas como guardiã dos princípios éticos e morais que cercam os valores da cultura democrática internalizados pelos cidadãos das mais diferentes classes sociais, num jogo compartilhado por todos, que reconhecidamente entendem e aceitam as regras, independente das condições de desigualdade entre os homens.

A noção fundamental de que o descumprimento das regras e normas dessa sociedade são uma afronta a democracia e a estabilidade e/ou equilíbrio entre governo e sociedade é uma característica importante da necessidade de preservação desses princípios como forma de salvaguardar a coesão social. A ruptura do contrato social é, portanto, um componente crucial de identificação de transgressões sociais que não são aceitas pela sociedade americana, mesmo por aqueles indivíduos reconhecidamente pertencentes às minorias sociais.

O respeito às regras socialmente estabelecidas é entendido como a extensão dos direitos aos outros indivíduos não apenas ao cumprimento da lei confeccionada por um Estado ou Governo através das instituições democráticas formais representadas pelo parlamento, executivo e judiciário. O entendimento de que a convivência com outros indivíduos é primordial na extensão das liberdades e da coesão social é a chave da manutenção da democracia em um âmbito maior.

Os americanos se comprometem a conviver com outros cidadãos ou agrupamentos sociais e a negociar as disputas individuais ou coletivas em espaços reconhecidamente públicos, entendendo que o espaço social é o lócus das disputas judiciais e da democracia

Segundo Lima :

O espaço público – em inglês, public – aparece assim como um espaço coletivo negociado pelo público que dele faz parte, que pertence ao local e que se compromete a conviver com as diferenças “normais” – quer dizer, aquelas que foram explicitamente discutidas e aceitas – num sistema de segregação dos iguais, mas diferentes, que procura, assim, prevenir explicitamente o conflito latente entre indivíduos únicos com interesses divergentes. A imagem com que essa sociedade prefere se representar é aquela de um paralelepípedo, em que a base é igual ao topo e todos, separadamente, têm direito à mesma trajetória, desigualmente trilhada por cada um dadas suas próprias condições de habilitação e capacitação. Como diz Roberto DaMatta (1979), todos separados, mas juntos.

No caso do Brasil os cidadãos não disputam seus interesses e divergências na esfera pública, já que esse terreno democrático e de aprimoramento da cidadania e da sociedade foi sempre demarcado por disputas de elites políticas e econômicas onde o lugar dos bacharéis e sua ideologia impuseram conceitos de justiça e harmonia social a partir de uma retórica pertencente a um campo (conceito conforme a utilização de Bourdieu) e não baseado em argumentações representadas pelos interesses em disputa.

As argumentações e as disputas não foram ampliadas ao espaço público, já que esse espaço sempre foi tomado pelo Estado representado pelas classes dirigentes que historicamente cercaram o território físico e geográfico e impuseram as suas vontades a esmagadora maioria da população. Os detentores dos poderes políticos e econômicos proporcionaram a eles mesmos o direito e o privilégio de acesso a tomada de decisão da coisa pública e a vida individual e coletiva dos próprios indivíduos que pertenciam ao espaço público; mas, esses indivíduos dominados pelo aparelho de Estado concentrado nas mãos da elite ainda em construção não tinham noção de identidade e pertencimento.

O acesso ao conhecimento e conseqüentemente as leis fez do conceito de direito, lei e justiça uma questão de defesa de teses normativas, ignorando as peculiaridades das disputas especificamente locais. O espaço público foi de maneira geral se submetendo as leis do Estado soberano sem prever as necessidades e as especificidades dos embates locais e multifacetados.

Por outro lado e de forma genérica algumas coincidências se posicionaram de maneira cada vez mais próxima no que se refere às práticas dos governos nesse último quarto de século passado. As formas violentas de tratamento das populações (leia-se minorias) nesses dois países; um considerado desenvolvido e quase hegemônico e o outro atrasado e subserviente.

Mas, quando falamos em Estados Unidos não podemos deixar de ressaltar que apesar dos avanços dessa sociedade, algumas formas de depreciação social ocorreram principalmente no final dos anos sessenta para o início dos setenta devido a várias contingências de ordem social, histórica e econômica que colocam esse país desenvolvido como parâmetro de violência institucional e que serve de modelo para entendermos como a exclusão social se manifesta mesmo em países desenvolvidos.

A expansão dos direitos humanos nos anos sessenta, a guerra ou terrorismo de Estado praticado contra os países asiáticos que orbitavam em torno das disputas no Vietnã como o Camboja e a Indochina e a revolução-contestação cultural característica do final dos anos sessenta servem de sinal ao país imperial hegemônico que era necessário controlar a “democracia” paradoxalmente internalizada como um valor estadunidense.

A violência praticada contra a cidadania ressalta-se através das políticas públicas praticadas principalmente a partir do governo de Richard Nixon, isto é, quase que concomitantemente a fase mais aguda da guerra do Vietnã, onde o encarceramento aparece como política contra a violência. A partir de então se inicia outra guerra; a guerra contra os próprios cidadãos, principalmente as minorias étnicas e sociais, isto é, uma guerra ou conflito interno.

De acordo com Wacquant :

O segundo motor da inflação carcerária americana é a mutação dos usos político-midiáticos da criminalidade como reação aos movimentos de contestação dos anos 60. Para sufocar os tumultos populares provocados pela guerra do Vietnã e pela mobilização dos negros em favor da igualdade civil, os políticos conservadores, republicanos e democratas vão aperceber-se do “problema", e fazer da “luta contra o crime” seu principal contra-ataque à expansão (modesta) do Estado social, necessária para suprimir a pobreza e a desigualdade racial (BUTTON, 1978, P. 163-166)
A construção de penitenciárias caminha no mesmo sentido da política de prisões e de fechamento de estabelecimentos exclusivos para jovens infratores. A violência e o nível de terrorismo de Estado e agressão a outras nações que não compartilham com os Estados Unidos a sua ideologia e suas parcerias comerciais fazem ascender à agitação e os protestos contra a nação estadunidense, e esse processo intensifica-se à medida que a legitimidade do imperialismo esvazia-se e também porque esse país é reconhecidamente interpretado como comandante da dominação global e causador de inúmeros sofrimentos que são percebidos cada vez mais pelas populações espalhadas pelo mundo.

Com a derrocada do socialismo real capitaneado pela ex-União Soviética e a ascensão do neoliberalismo alicerçado pela terceira revolução industrial da era da informatização as contradições se dinamizam e ampliam no setor externo e a luta de classes torna-se mais visível no plano interno.

Segundo Chomsky:

O planejamento militar está pensado tendo em vista essa possibilidade, bastante explicitamente. Existe uma analogia doméstica, é provável que essa visão toque no ponto nevrálgico do brusco incremento da criminalidade. O aumento dos encarceramentos ocorrido ao longo de todo o período neoliberal teve como centro os grupos que na América Latina são às vezes chamados de “descartáveis” ou são alvos da “limpeza social”. Os Estados Unidos são mais civilizados em lugar de assassinarem-nos, colocam-nos na cadeia e isto ocorre sincronizadamente com o período neoliberal. Clinton aumentou os números de encarcerados mais ou menos de 50%. Bem, tudo isso nos conduz ao primeiro dilema: como controlar a população que está suportando os custos e os riscos?
Assim como no plano externo, a política de justiça e cidadania nos Estados Unidos funciona como uma indústria. As políticas públicas de combate a violência são sinônimos de investimentos de infra-estrutura como prédios e tecnologia da vigilância e detenção, e por outro lado, diminuição de recursos em educação e assistência a famílias carentes.

A política de encarceramento dos Estados Unidos não está somente ligada ao imperialismo, mas também a cultura da sociedade estadunidense, que de forma conservadora distingue a priori dois tipos de cidadãos: os cidadãos honestos (the innocent) e a gente má (the wicked).

Apesar dos Estados Unidos disseminarem pelo mundo a imagem de um país democrático e que propicia a integração étnica com igualdade de oportunidades, os indicadores sociais apontam para um aumento considerável na desigualdade social principalmente a partir do final da guerra do Iraque, onde as contestações no plano interno estão mais evidentes, já que a luta dos negros, os grupos de pressão pelo não envolvimento dos Estados Unidos em aventuras beligerantes e o próprio acirramento da luta de classes cresceu enormemente.

A violência contra os grupos minoritários aparece como uma resposta ou contra-ataque da elite em favor da supressão do crescente processo de reivindicação do estado social. Neste ponto, tanto os republicanos quanto os democratas concordam que é importante combater o crime no sentido de tranqüilizar as classes privilegiadas, ameaçadas por uma horda de negros desocupados e demais grupos que atentam contra a democracia do “apartheid” social.

As prioridades nacionais nos Estados Unidos refletem a necessidade de dominação e a legitimação do imperialismo. Tanto a política externa quanto a interna estão pautadas pelo excesso de força e intolerância contra os povos e os grupos minoritários dentro e fora dos Estados Unidos. Mas essa política está relacionada com a chamada contenção à democracia e não se trata apenas de um repúdio as minorias sociais, mas sim, a pressão contra os movimentos libertários e democráticos.

Os meios de comunicação contribuem na legitimação das políticas de diminuição de gastos sociais velados e aumento de políticos de fomento ao keynesianismo militar, encarceramento privatizado e outras de privilégio comercial e mercadológico através da propagação da ideologia do medo do terrorismo, das drogas e também do inimigo bélico externo; assim ocorreu na guerra fria e agora contra os denominados integrantes do “eixo do mal”.

Mas é justamente o oposto; o terrorismo de Estado e a agressão são patrocinados e promovidos pelo estado armamentista imperial estadunidense e seus parceiros pulverizados na Europa, Ásia, entre outros espaços geográficos.

Os Estados Unidos representam o quanto às políticas de Estado de qualquer nação violentam seus cidadãos quando não são construídas pela sociedade civil, mas sim, impostas de cima pra baixo, pela mão de ferro de seus governantes, que tem por finalidade atingir objetivos escusos e tendem a ser indiferentes aos interesses da cidadania; isso, quando não a sabotam.

REFERÊNCIAS:

BORON, Atílio A, Org. Nova hegemonia mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales, 2004.

WACQUANT, Loïc. Crime e castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton. Curitiba: artigo publicado à Revista de Sociologia e Política número 13, 1999.

LIMA, Roberto Kant. Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Curitiba: artigo publicado à Revista de Sociologia e Política número 13, 1999.


Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino





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