terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O TRABALHO COMO VALOR HUMANO E A ALIENAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO COMO PARADOXO

Contar com o pagamento do trabalho nem sempre pode ser considerado como algo intrínseco as relações de reciprocidade humana no que tange ao processo de trocas no sistema econômico, aliás, o sistema conhecido como de mercado começa a ser preponderante a partir da Revolução Industrial de meados do século XVIII aproximadamente.

Antes dessa fase de ascensão do modo de produção capitalista e mesmo durante o desembocar de um novo paradigma cultural, social, político e econômico que inicia sua trajetória a partir das revoluções burguesas, muitas comunidades mantinham relações ou vínculos norteados pela valorização do trabalho no sentido do prazer e da aprovação social.

O ganho pela realização do trabalho passa a se tornar corrente nas comunidades mais civilizadas. Vale lembrar, que a principal potência econômica da Revolução Industrial – a Inglaterra – apenas consegue obter a maioria da população vivendo nas cidades a partir de meados do século XIX, isto é, praticamente já na Segunda Revolução Industrial.

Não encontramos o trabalho associado a idéia do pagamento em qualquer local de uma sociedade primitiva ou outras comunidades que não tenham sofrido grandes influências principalmente da civilização ocidental. O tratamento do trabalho como obrigação, aquele que exige compensação ou pagamento passa a ser reconhecido como legítimo com o dinamismo das relações de troca impulsionadas pelo modo de produção capitalista. Mesmo o estranho diante de determinada comunidade trabalha pela honra e pelo reconhecimento e aqueles que aceitavam pagamento eram considerados menestréis sem percepção e compromisso com as questões que envolvem a honra, e, eram desprezados por essa atitude.

A utopia do mercado do mundo moderno transformou todas as forças produtivas em mercadoria para a troca e ideologicamente construiu uma imagem a-crítica e a-histórica sobre o desenvolvimento dos mecanismos de integração social via a lapidação do trabalho no sentido antropológico-cultural. A retórica do mercado como modelo padrão explicativo para a formação das sociedades desde há muito tempo não encontra veracidade se levarmos em conta as pesquisas relacionadas a antropologia social, economia primitiva, história econômica e a própria economia política segundo estudos sérios sobre o tema.



Segundo Polanyi:



“Os incentivos habituais do trabalho não são o ganho mas a reciprocidade, a competição, o prazer do trabalho e a aprovação social.



Reciprocidade: “A maioria, senão todos os atos econômicos pertencem a alguma cadeia de presentes e contrapresentes recíprocos que, a longo prazo, chegam a um equilíbrio e beneficiam igualmente todos os lados... O homem que desobedecesse persistentemente às regras da lei nas suas transações econômicas logo se veria à margem da ordem social e econômica – e ele está perfeitamente consciente disso” (Malinowski, Crime and Custom in Savage Society, 1926, PP. 40-41).



Competição: “A competição é acirrada, a execução, embora uniforme no seu objetivo, é variada por excelência... Uma disputa na excelência da reprodução dos padrões” (Goldenweiser, “Loose Ends of Theory on the Individual, Pattern, and Involution in Primitive Society”, em Essays in Antropology, 1936, p. 99). “Os homens se rivalizam uns com os outros na velocidade, na eficiência e nos pesos que podem levantar quando trazem grandes estacas para o jardim ou quando transportam os inhames colhidos” (Malinowski, Argonauts, p. 61).



Prazer do trabalho: “O trabalho por ele mesmo é uma característica constante da indústria Maori” (Firth, “Some Features of Primitive Industry”, E. J., vol. I, p. 17). “Dedica-se muito tempo e trabalho para fins estáticos, para arrumar, limpar e retirar todo o entulho dos jardim para construir cercas refinadas e sólidas, para conseguir estacas de inhame grandes e fortes. È claro que todas essas coisas são importantes para o crescimento da planta, mas não há dúvida também de que os nativos levam sua escrupolosidade além dos limites do puramente necessário” ( Malinowski, op. Cit., p. 59).



Aprovação social: “A perfeição na jardinagem é o índice geral do valor social da pessoa” (Malinowski, Coral Gardens and Their Magic, vol. II, 1935, p. 124). “Espera-se que cada pessoa da comunidade mostre uma medida normal de aplicação” (Firth, Primitive Polynesian Economy, 1939, p. 161). “Os ilhéus Andaman vêem a preguiça como um comportamento anti-social” (Ratcliffe-Brown, The Andaman Islanders). “Colocar o trabalho de alguém sob o comando de outro é um serviço social e não apenas um serviço econômico” (Firth, op. Cit., p. 303).



Portanto, o trabalho como componente ou gerador de valor para a acumulação do capital passa a ser compreendido dessa forma a partir das grandes transformações ocorridas no modo de produção capitalista desde o final do século XVIII. De qualquer forma houve resistência das comunidades tradicionais em participar e querer compreender as relações de troca como comércio e a própria divisão do trabalho que não fossem sem favor dos componentes que envolvem reciprocidade e o prazer do trabalho, além é claro, da sobrevivência da comunidade.

A partir desse ponto de imbricação podemos abordar os aspectos que conduziram as modificações no mundo do trabalho na sociedade moderna na atualidade. As questões que constroem uma nova configuração do trabalho, as desregulamentações e a intensificação das especialidades inseridas no contexto de uma nova divisão social e internacional do trabalho precisam ser compreendidas no bojo do sistema capitalista contemporâneo.

O paradigma do Welfare State (Estado de Bem Estar Social) trouxe a luz uma necessidade de construir um pacto social e trabalhista que propusesse novas condições de regulamentação e seguridade no modelo fordista da fábrica. O modelo liberal anterior do final do século XIX baseado no taylorismo-fordismo necessitava ser revisto em termos de ordenamento e organização produtiva. O modelo da grande indústria moderna respirou por mais tempo devido a Era de Ouro do pós-segunda guerra e exauriu suas forças já no final da década de 1960. Essa transição que inicia sua trajetória através da ruptura de um modelo fordista esgotado já nos anos de 1970 abre espaços para o que podemos denominar de morfologia do trabalho.

A terceira revolução em curso capitaneada pela telemática (moldes baseados na microeletrônica) impõe condições no sentido da reorganização da produção (engenharia, qualidade, flexibilidade e adequação a normas) em vista de um paradigma alternativo chamado por muitos de toyotismo.



A TRANSFORMAÇÃO NO MUNDO DO TRABALHO



O paradigma fordista tornou-se o paradigma da industrialização durante quase todo o século XX, e sustentou um modelo de produção capitalista baseado em premissas fundamentais como a racionalização das tarefas, de modo a diminuir os gastos com o tempo, o parcelamento das tarefas, segundo as recomendações tayloristas; a conexão entre as funções dos diversos operários, a padronização das peças a fim de possibilitar uma melhor adaptação que se moldasse ao processo de verticalização da empresa.

O domínio do processo de trabalho alcançado pelo fordismo permitiu ao capital a intensificação da exploração da força de trabalho. A parcelização possibilitou o adestramento da habilidade de cada operário, de modo a diminuir o tempo morto de cada atividade e a aumentar a intensidade do trabalho.

Essa intensidade do trabalho, da concentração do capital e da reconfiguração das classes sociais e do próprio estilo de vida conduziu a uma espécie de privatização das relações sociais e do modo de vida das pessoas, em particular do operário.

As conseqüências dessa reconfiguração contribuiu para flexibilizar as relações de trabalho comparadas ao modelo fordista antes da segunda guerra mundial e enfraqueceu os laços de solidariedade entre os membros da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo em que esse operário é atomizado pela produção parcelada e desqualificada, também o é pelo consumo mercantil, possível somente individualizado.

Ao contrário dos trabalhadores da atualidade, em que o processo ideológico já está infiltrado nas entranhas das relações afetivas, familiares e sociais como parte constituinte do padrão de convivência, comportamento e atitude frente a fruição do fetichismo; os trabalhadores do início do fordismo passaram pelo processo de aculturação devido ao fato de serem em sua grande maioria estrangeiros e pertencentes a um estilo de vida ainda ruralizado por serem homens e mulheres oriundos do campo.

O enfraquecimento do regime de acumulação fordista também ocorreu devido a situações de ordem cultural, mas evidentemente não apenas essa. Alguns pontos merecem ser destacados no que se refere ao esgotamento do padrão fordista de produção e acumulação:



a) Dentre as situações culturais destacáveis se enquadra a saturação das normas sociais do consumo devido a padronização excessiva dos produtos em grande quantidade;

b) Diminuição dos ganhos de produtividade, devido aos limites técnicos e sociais dos métodos fordistas e tayloristas de produção e trabalho;

c) Elevação da composição orgânica do capital recaindo sobre a queda na taxa de lucro em virtude do aumento do capital constante em oposição a diminuição do capital variável.



Com o advento do toyotismo ou padrão de acumulação flexível o modo de produção capitalista passa por um processo de reestruturação produtiva a partir das revoluções tecnológicas em curso, além da reconfiguração da divisão social do trabalho nos moldes da reengenharia, qualidade total, controle racionalizado dos estoques, e, diretamente ligado ao trabalho temos a produção flexível realizada nas células de produção.

A mudança substancial na concepção e na organização do trabalho tornou-se visível a partir do final da década de 1970 nos países desenvolvidos e no Brasil praticamente uma década depois com maior percepção geral. As mudanças tecnológicas e o aumento da capacidade produtiva não conseguiram colocar o trabalhador em uma situação mais confortável no que tange a uma melhor acomodação no trabalho com menores desgastes as engrenagens humanas.

As graves conseqüências sociais da nova configuração capitalista estão relacionadas com a precarização do trabalho de parcelas cada vez maiores da população. O aumento da jornada de trabalho, as desregulamentações das leis trabalhistas e dos contratos de trabalho são alguns dos pontos de destaque em relação ao processo de precarização do trabalho no mundo contemporâneo, principalmente após os anos de 1970.

Marx já apontava para a tendência da intensificação do processo de precarização à medida que crescia o contingente de pessoas dispostas a aceitar condições de trabalho inferiorizadas em troca da empregabilidade, mesmo em tempos de ausência de leis trabalhistas, já que a necessidade de sobrevivência empurrava o trabalhador no sentido da venda da sua força de trabalho em troca de remuneração que mal supria as necessidades de subsistência.

Nas análises de Ricardo Antunes a precarização do trabalho aparece como um dos aspectos determinantes da fragmentação do proletariado, na tentativa de esvaziamento e enfraquecimento da luta de classes ensejada pelo capital.

Existem basicamente três modalidades ou grupos de trabalhadores que atuam no mercado:



a) Os estáveis, com garantias de emprego, salário e benefícios sociais garantidos pela lei;

b) Aqueles que trabalham com contratos temporários, que estão em situações instáveis e de subcontratação;

c) E aqueles grupos de trabalhadores que estão excluídos parcialmente ou fora até do mercado de trabalho, sobrevivendo apenas através de benefícios oferecidos pela seguridade social.



O processo de precarização do trabalho não se aplica de forma homogênea a todos os setores da classe trabalhadora. No caso das mulheres a sua incorporação no mundo do trabalho se deu de forma desigual e precarizada com maior intensidade. As mulheres, negros e estrangeiros são alocados e realocados dependendo da situação em funções bastante desgastantes do ponto de vista físico,além da precariedade dos contratos de trabalho, isso quando eles existem.

No caso brasileiro, em particular, ocorrem situações bastante deploráveis em termos insalubres e de cárcere privado com crianças, trabalhadores nortistas e nordestinos em maior número.



Segundo Antunes:

Na divisão sexual do trabalho, operada pelo capital dentro do espaço fabril, geralmente as atividades de concepção ou aquelas baseadas em capital intensivo são preenchidas pelo trabalho masculino, enquanto aquelas dotadas de menor qualificação, mais elementares e muitas vezes fundadas em trabalho intensivo, são destinadas às mulheres trabalhadoras (e muito freqüentemente também aos trabalhadores/ as imigrantes e negros/ as).





Como acontece com todos os outros aspectos da produção, o processo de precarização do trabalho inscreve-se na necessidade de flexibilização e desregulamentação do padrão de produção e das relações de trabalho.

O trabalho tende a ser explorado e requisitado a partir de uma dinâmica de acumulação que racionaliza as relações de trabalho no seu ponto máximo, isto é, a contratação e dispensa de trabalhadores não passa pelas relações de honra, prazer e troca nos moldes das comunidades que não atuam sobre a lógica do mercado.

Portanto, a única possibilidade de transformação do mundo é através das relações de trabalho, de qualquer natureza e não a família como muitos acreditam. São as questões dialéticas, de contradição, da disputa e da luta por espaços de reivindicação política, social, econômica e cultural que irão impulsionar a sociedade. A família representa o núcleo mais conservador, reacionário e atomizado e reproduz a alienação e a sujeição da estrutura capitalista.

Procurar recorrer a organização social e política no sentido da busca da liberdade e da igualdade como um processo recíproco de interação entre os sujeitos não entre as mercadorias, talvez seja o primeiro passo.


REFERÊNCIAS:

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000,

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo,1999.

Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

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