sexta-feira, 23 de julho de 2010

Um debate fundamental acerca da institucionalização da política - uma discussão a partir da visão do filósofo húngaro István Mészáros

A atualidade histórica da ofensiva socialista: pela política extraparlamentar no século XXI

Fernando Marcelino

A urgência das questões levantadas por István Mészáros em A atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema parlamentar, lançado pela Boitempo (2010) na coleção Mundo do Trabalho, não me permite fazer grandes rodeios nesta pequena resenha . Para Mészáros a verdadeira pergunta hoje é: como estabelecer firmemente uma direção global ao movimento socialista (diante do desdobramento histórico da crise estrutural do capital que afeta a totalidade dos trabalhadores e tem uma dimensão universal) conseguindo, em termos organizacionais e estratégicos, efetuar simultaneamente a dimensão negativa da luta de classes contra o capital e positiva para além do capital?

Mészáros aponta que a atual “crise do marxismo” se deve principalmente ao fato de que muitos de seus representantes continuam a adotar uma posição defensiva, numa época que deveríamos nos engajar numa ofensiva socialista em sintonia com as condições objetivas contemporâneas. Paradoxalmente, nos últimos 40 anos, juntamente com a manifestação da crise estrutural do capital, testemunhamos a disposição de muitos marxistas em buscar novas alianças defensivas e se envolverem com todos os tipos de revisões e compromissos ainda que não tenham nada para mostrar como resultado de tais estratégias fundamentalmente desorientadas. Desiste-se do horizonte socialista em nome de um “capitalismo democrático” sem seus excessos mais perversos, como se não fossem constitutivos desta mesma ordem social. Para o húngaro, essa desorientação não é simplesmente ideológica ou pode ser reduzida a uma questão de “traição” de determinadas personalidades. Na realidade, se quisermos encontrar uma explicação mais plausível do que essas idéias circulares de falha na “personalidade” devemos enfrentar os problemas estruturais de nossa “política democrática”. Emergem duas dificuldades desse conflito: por um lado a autorreferencialidade do discurso político que atua sob o horizonte estritamente institucionalizado das decisões políticas ignorando os interesses materiais do capital no resultado dos conflitos e antagonismos. Por outro lado encontramos a dificuldade relacionada com a forma com que o sistema parlamentar é tratado no discurso político tradicional, geralmente como “centro de referência necessário de toda mudança legítima. A crítica só é admissível em relação a alguns detalhes menores, visando corretivos potenciais apenas para remediar até certo ponto a estrutura da política parlamentar estabelecida” (2010, p.15).

O Parlamento como tal é tratado como tabu, excluindo-se a legitimidade de se defender a instituição de uma alternativa radical viável ao aprisionamento político-parlamentar da classe trabalhadora. Trata-se de assunto sério, pois sem o estabelecimento de uma alternativa radical ao sistema parlamentar não pode haver esperança de desembaraçar o movimento socialista de sua atual situação, à mercê das personificações do capital que existem em suas próprias fileiras (idem, p. 15).

O pensamento de Mészáros nos leva a imediata necessidade de se criar uma “alternativa estrategicamente sustentável ao sistema parlamentar” para “libertar o movimento socialista da camisa de força do sistema parlamentar burguês” . Portanto, para as perspectivas da emancipação do trabalho, nunca foi de tão grande importância a luta política e a crítica radical do Estado, inclusive suas “instituições democráticas” entre eles, o Parlamento. Até mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital – o Estado liberal-democrático com sua representação parlamentar e suas garantias democráticas formais e institucionalizadas de “justiça e imparcialidade” - fracassou em todas as promessas que a autolegitimavam. Além disso, como o Estado é a estrutura totalizadora de comando político do capital, a exigência para proteger a produtividade do sistema se assevera diante da atual crise estrutural. Sua crescente intervenção autoritária está, portanto, em sintonia com a dinâmica de reprodução socioeconômica voltada para a incontrolável expansão e acumulação de capital.

Entretanto o fardo que se coloca hoje para o movimento socialista é a reestruturação da própria política complementando a ação institucionalizada pela ampliação radical de formas extraparlamentares para combater o caráter extraparlamentar e destrutivo do capital. Mészáros aponta duas razões para que esse processo se desenrole: por um lado o aprofundamento da crise estrutural do capital que trás crescentes dificuldades do trabalho obter ganhos efetivos – ao molde do passado - através das instituições defensivas existentes. Isso corresponde ao desconfortável fato negativo de que algumas formas de ação anteriores (“as políticas de consenso”, “pleno emprego, “a expansão do Estado de bem-estar-social”, “keynesianismo para todos” etc.) estão objetivamente bloqueadas, impondo reajustes profundos na sociedade como um todo. Estar partindo dessa “negatividade brutal” inicial não significa que os reajustamentos serão positivos, mobilizando as forças socialistas num esforço consciente para se apresentarem como portadoras de uma ordem social alternativa capaz de superar a sociedade capitalista em crise. Como essas mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de prontamente aceitarmos o “salto para o desconhecido”, é mais provável que se prefira seguir a “linha de menor resistência” ainda por um tempo considerável, mesmo que isso signifique derrotas significativas para as forças socialistas.

Por outro lado temos a pressão objetiva pela reestruturação radical das instituições de luta socialista, para que sejam capazes de ir ao encontro do novo desafio histórico, numa base organizacional que se evidencia adequada a necessidade crescente de uma estratégia ofensiva para além do capital. Está em jogo, portanto, a construção de uma estrutura organizativa capaz de não só negar a ordem dominante, mas também, simultaneamente, de exercer funções vitais positivas de controle para romper o círculo vicioso de controle social do capital e sua própria dependência negativa e defensiva em relação a ele.

Por isso a importância do “estabelecimento de uma alternativa radical ao sistema parlamentar” já que não pode haver estratégia viável de transformação socialista “sem prosseguir com firmeza na realização da unificação das dimensões política e material de reprodução também no domínio organizacional [...]. Tal potencial é viável pela tentativa consciente de superar a fatídica separação entre o braço industrial do movimento operário e o braço político (os partidos no Parlamento), separados sob o invólucro capitalista de ambos por meio da aceitação da dominação parlamentar pela maioria do movimento operário ao longo dos últimos 130 anos” (idem, p. 34). Essa domesticação das forças do trabalho é diametralmente oposta “a alternativa radical de fortalecimento da classe trabalhadora para se organizar e se afirmar fora do Parlamento – por oposição à estratégia derrotista seguida ao longo de muitas décadas até a perda completa de direitos da classe trabalhadora em nome do ‘ganhar força’ – [que] não pode ser abandonada tão facilmente, como se uma alternativa de fato radical fosse a priori uma impossibilidade” (idem, p. 35). Mészáros afirma que a ação extraparlamentar é absolutamente vital para o futuro de um movimento socialista rearticulado radicalmente. Esse é o desafio que poderia afetar o poder do capital ao assumir as funções de produção decisivas do sistema ao mesmo tempo em que adquire o controle sobre todas as esferas correspondes da tomada de decisão política. O não-condicionamento pela “prisão circular da ação política institucionalmente legitimada pela legislação parlamentar” da ação extraparlamentar de um movimento revolucionário de massas, ativo em todas as formas de luta política e social, ainda pode ter como horizonte “utilizar plenamente as oportunidades parlamentares quando disponíveis, ainda que limitadas nas atuais circunstâncias, e, acima de tudo, sem medo de afirmar as demandas necessárias da ação extraparlamentar desafiadora” (idem, p. 43). O papel de um movimento revolucionário extraparlamentar é duplo. Cabe a ele “formular e defender organizacionalmente os interesses estratégicos do trabalho como alternativa sóciometabólica historicamente viável” ao enfrentar conscientemente e negar vigorosamente, em termos práticos, as determinações estruturais da reprodução material do capital que se manifesta na subordinação do trabalho ao processo socioeconômico ao mesmo tempo em que o poder político (que hoje prevalece no Parlamento) deve ser contestado “por meio da pressão que as formas de ação extraparlamentar podem exercer sobre o Legislativo e o Executivo” (idem, p. 44). Por outro lado as forças parlamentares da política não podem se articular de forma auto-suficiente e autônoma já que não são organizações autoconscientes. O maior desafio continua sendo a formação de militantes políticos nas organizações extraparlamentares em coexistência com partidos de experiência histórico-concreta na luta de massas e com o horizonte definido para uma revolução socialista.

Muitas vezes essa reciprocidade é rompida quando as forças políticas institucionais procuram institucionalizar as forças extraparlamentares – e assim domesticá-las - ou a procura imediata dos recursos econômicos do Estado acaba por tornar o movimento extraparlamentar uma grande massa de manobra para interesses partidários escusos . A questão é que hoje a aceitação das amarras parlamentares como a única estrutura legítima da ação política, a aceitação das regras internas do jogo parlamentar – mesmo que praticada com propósito radical – só pode produzir o auto-encarceramento parlamentar da esquerda. Isso significa deixar de lado a política? Ao contrário, por mais desencorajador que sejam suas formas institucionais, não existe opção fora da política. O desafio para o movimento socialista é exatamente renovar práticas revolucionárias extraparlamentares para bater de frente com as forças destrutivas extraparlamentares do capital sob a crise estrutural em desdobramento. Como escreve no final da Introdução:

É claro que um movimento organizado revolucionário consciente de trabalhadores não poderá ser contido dentro da estrutura política restritiva do Parlamento dominado pelo poder extraparlamentar do capital. Ele também não terá sucesso como organização sectária auto-orientada. Poderá se definir com sucesso por meio de dois princípios orientadores vitais. Primeiro, a elaboração de seu próprio programa extraparlamentar orientado para os objetivos da alternativa hegemônica abrangente para assegurar uma transformação sistêmica fundamental. E, segundo, igualmente importante em termos de organização estratégica, o envolvimento ativo na constituição do necessário movimento extraparlamentar de massas, como portador da alternativa revolucionária capaz de mudar, qualitativamente, também o processo legislativo. Isso representaria um grande passo na direção do fenecimento do Estado. Apenas por meio desses desenvolvimentos organizacionais, com o envolvimento direto das grandes massas será possível imaginar a realização da tarefa histórica de instituição da alternativa hegemônica dos trabalhadores no interesse da emancipação socialista abrangente (idem, p. 49, 50)
A pergunta que fica é: estamos preparados para superar o “fim da história” da democracia-liberal como horizonte último articulando assim uma alternativa histórica tanto ao capital quanto ao sistema parlamentar estabelecido? Emerge a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na organização e orientação do movimento socialista para uma intervenção radical que não seja restrita à esfera política e que conteste também as estruturas materiais da própria relação-capital. Não há saída para o movimento socialista senão criar as condições para tal empreitada revolucionária em escala internacional de massas. Não é a toa que “o percurso à frente é provavelmente muito árduo e, sem dúvida, não tem atalhos nem pode ser evitado” (idem, p. 197).

Sem dúvida A atualidade histórica da ofensiva socialista é uma poderosa arma contra a resignação e as estratégias estreitas do movimento socialista que, cada vez mais, mostram-se estéreis ao se limitar a ação parlamentar e não correspondem ao fardo histórico que temos pela frente no processo de transição ao socialismo. Numa época em que parte considerável das instituições de luta faz parte do problema e não da solução, Mészáros proporciona uma profunda oxigenação na esquerda ao esgarçar os limites do possível e do impossível afirmando a validade e universalidade da solução socialista como a única alternativa possível à realidade antagônica e destrutiva do capital.

2 comentários:

  1. Caro colega, Mészáros tem toda razão quando afirma que a luta operária não pode ficar a reboque da luta parlamentar burguesa; e que a auto-organização dos trabalhadores, de baixo para cima, deve gerar as possibilidades de superação dos limites da democracia burguesa. O problema é que Lênin e Trotski, muitos antes de Mészáros, já diziam isto. Não querendo ser pessimista, mas parece que a classe trabalhadora só tirou a bunda da cadeira quando a burguesia resolveu meter fogo no barraco. A Revolução Russa é produto da I Guerra Mundial, o Welfare State produto da Segunda Guerra, a Comuna de Paris da guerra Franco-Prussiana, etc, etc, etc, ou seja, os fatores objetivos devem atingir a proporção de catástrofe para que o homem, na sua racionalidade (???) imediatista, avance na construção de uma nova sociedade.
    Desde o Manifesto Comunista muito chão já passou, devemos olhar com senso crítico aquilo que a história do século XX nos oferece. Se a natureza do ser humano não deve ser lamentada, mas compreendida, o breve século vinte tem muito a oferecer neste aspecto, mesmo que nos possa oferecer apenas uma boa limonada, como dizia Engels.

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  2. Realmente, depois de todo furação que a crise grega gerou na Europa, fiquei profundamente decepcionado com a classe trabalhadora européia. Observei manifestações e greves de uma minoria politizada, enquanto a grande massa da população adotou, como forma de protesto, votar na oposição de direita.
    Desta forma, como pensava Espinosa, parece que sempre escolhemos a opção conhecida ao invés de um futuro bem que, mesmo sendo superior a este, nós é desconhecido.

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