quinta-feira, 29 de julho de 2010

Esse é o capitalismo: uma reflexão acerca do capital e trabalho

Que capitalismo vive no mundo hoje?

escravidão creditícia e expansão destrutiva do capital

O capitalismo é marcado por contradições que não podem se resolver dentro de seus

fundamentos estruturais. Na realidade, o capitalismo se destaca por criar problemas

e não por solucioná-los. Sendo coerente com sua “razão de ser” o capital cria

problemas que não pode enfrentar ampliando e acumulando-os de forma crescente. É um

sistema totalizador e parasitário. Marx encontrava no comunismo o desatar

irreversível dos nós que são criados pelo capitalismo a partir de seu esgotamento

histórico marcado por seu desdobramento mundial, profundas desigualdades,

catástrofes naturais, desemprego e, não menos importante, um processo de

financeirização global, desvanecimento do capitalista industrial, uma rede de

crédito crescentemente ampliada e complexa para “solucionar” suas crises e a

ascensão de auto-organizações do trabalho em massa que coloquem em xeque tanto o

capital como o Estado.

Rosa dizia que o capitalismo só pode avançar enquanto existirem “áreas virgens”

abertas à expansão e acumulação de capital. Toda vez que são “capitalizadas” essas

economias “não-capitalistas” as contradições do capital se potencializam já que se

torna necessário procurar novas áreas de colonização do capital quando elas se

esgotam. Ao invés de resolver suas contradições, cada momento expansivo do capital

rumo às “áreas virgens” aprofunda suas contradições. Por mais que possa prosperar

por certo período, sua tendência expansiva esgota (cada vez mais rápido) as fontes

de sua própria alimentação que já não são suficientes. Aí emerge a crise. As crises

do capitalismo moderno se manifestam tanto como esgotamento como necessidade de

colonizar novas áreas virgens para manter seu movimento de acumulação e expansão.

As crises do capitalismo acompanham seu desenvolvimento pautado tanto na valorização

de capital em detrimento ao trabalho socialmente necessário para a produção de

mercadorias em áreas não-capitalistas como nas crescentes dificuldades da própria

valorização: quanto mais se valoriza, mais o capital encontra entraves a valorização

sendo um imperativo colonizar áreas “desconhecidas” pela lógica do capital. Sem esse

movimento o capitalismo não vive.

Uma das principais áreas que o capitalismo tem se expandindo nos últimos 30 anos é

no terreno do crédito. O capital necessita cada vez mais vender o presente – “não

adie a realização de seu desejo!” – para sobreviver. Com crédito pague depois e

desfrute agora. Obtenha o que quiser quando desejar e não quando ganhar o suficiente

para comprá-las. Não pense no “depois”. Endivide-se agora e atenda prontamente suas

aspirações. Max Weber e seu capitalismo baseado na privação, no gasto com prudência,

nas economias na caderneta de poupança e na paciência para que só após juntar o

suficiente se gaste faz parte de uma época que o próprio capitalismo enterrou e

deixou para os livros de história.

Hoje vivemos numa era que o capitalismo se mantém mediante a “escravidão creditícia”

onde a dívida contraída foi transformada numa fonte permanente de lucros. Quanto

mais fácil adquirir crédito mais difícil é se livrar das dívidas que se amontoam em

nome de “dinheiro barato”. Vende-se crédito das mais diferentes formas imagináveis

ao mesmo tempo em que se estimula que nunca se faça o “pagamento final”. Não estar

devendo não interessa aos bancos. Do ponto de vista daqueles que emprestam dinheiro,

a ausência de débitos é terrível. Os emprestadores atuais não querem seu dinheiro

por inteiro e nem tem prazos pré-fixados ou não-renováveis. Ao contrário, oferecem

mais crédito para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro que

eventualmente se tornará uma nova dívida. O cliente perfeito é aquele que nunca paga

sua dívida inteiramente e, além disso, fica cada vez mais preso em dívidas que

crescem. Às vezes as dívidas podem ser até amortizadas para que se possa pagar

indefinidamente por elas. São dívidas em cima de dívidas que prendem os sujeitos num

círculo vicioso.

A chamada “crise do crédito” nos EUA não foi resultado do insucesso dos bancos. Ao

contrário, foi seu extraordinário sucesso em transformar um incontável número de

seres humanos – homens, mulheres, jovens, velhos – numa “raça de devedores” eternos

numa autoperpetuação do “estar endividado” a medida que fazer mais dívidas é visto

como único instrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas. Nunca foi

tão fácil na história da humanidade ingressar nessa condição assim como escapar dela

jamais foi tão difícil como hoje. Para Zigmunt Bauman, a atual contração do crédito

não é sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustão de mais um pasto. A busca

de novas pastagens terá início imediatamente alimentado, como no passado, pelo

Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos. Novas

“terras virgens” serão encontradas e novos esforços serão feitos para explorá-las,

por bem ou por mal, até o momento em que sua capacidade de engordar os lucros dos

acionistas e as gratificações dos dirigentes for exaurida. A grande questão é saber

quando se esgotará a lista de terras passíveis de “virginização secundária” do

capital e quando as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam,

deixaram de garantir um alívio temporário. De qualquer forma, uma coisa é certa: o

capital nunca irá simplesmente desistir de passar de uma caçada a outra enquanto

conseguir alavancar novas chances de adiar o momento da verdade, mesmo que por pouco

tempo e a qualquer custo (social, econômico, político, energético, bélico, etc.). A

plasticidade infinita da expansão do capital necessita tomar para si aquilo que é

exterior, não importa se é o inconsciente, a natureza, a cidade, o interior dos

corpos, a biodiversidade, biogenética, etc. Tudo que não faz parte de sua lógica é

uma questão de tempo e de luta política. Não é verdade que a legalização da maconha

está sendo colocada em pauta para recolher mais impostos na Califórnia diante do

estado de emergência fiscal e que a privatização de presídios e lixões já é

realidade em diversas áreas do mundo?

Sabemos, desde Marx, que o capital é um giro contínuo que tem como produto o lucro.

Por isso, uma crise decorre do alargamento da capacidade de produção acompanhado

duma relativa restrição dos salários que impõem uma limitação real no poder de

compra disponível para a demanda da produção sempre ampliada. Como conseqüência, os

lucros são comprimidos e necessitam se expandir para outros canais, como o

financeiro. Daí decorre também novas formas de crédito que são desenvolvidas para

perpetuar essa contradição ampliando a escravidão assalariada com a “escravidão

creditícia”.

O capital é auto-reprodução de dinheiro pelo revolucionamento do processo produtivo

de forma sempre ampliada. A primeira formulação de Marx é D-M-D’ que representa a

atividade do capital como auto-expansão. Para Kojin Karatani, Marx localiza como

salto mortale desse processo o momento M-D’, quando é determinado, ou não, se a

mercadoria é vendida para a realização do valor. Sem esse salto mortale a

auto-expansão da produção de capital é impossível. Para escapar desse crítico

momento e continuar o movimento de auto-reprodução, o capital necessita criar um

pacto artificial que presume que a mercadoria já foi vendida. Isso se chama crédito.

Crise, portanto, não é apenas causada pelo curto-circuito da acumulação de capital

devidas as mercadorias que não são vendidas, mas principalmente pela “revelação

forçada” – no momento da liquidação final – que as mercadorias que supostamente

deviam ser vendidas não foram vendidas na realidade. A dificuldade do salto mortale

da mercadoria é solucionado apenas quando é efetuada a venda dela. O pressuposto

para a produção é seu hipotético consumo, sua realização como valor. Na produção o

valor só é criado “em si”. Sem a finalização do processo pelo consumo, essa

potencialidade não se confirma. Portanto, a dialética entre produção e consumo é o

segredo do valor.

Com o desenrolar da desaceleração econômica global desde meados de 1970, nos Estados

Unidos houve uma estagflação nos salários dos trabalhadores. Desde meados de 1970 os

salários médios reais dos trabalhadores dos EUA cessaram de subir depois de sua

ascensão histórica de 1820 a 1970. Ao mesmo tempo, a produtividade do trabalho com

novas maquinarias, pressão social, neoliberalização, novas organizações do trabalho

(toyotismo, terceirização, informalidade, nova divisão internacional do trabalho)

proporcionaram, para os capitalistas, um aumento na extração da mais-valia[1].

Juntamente com esse processo de estagnação salarial houve um aumento progressivo da

“escravidão creditícia” onde, para viver, a tomada crescente de créditos se tornou a

forma de contornar o freio salarial dos trabalhadores e ativar a demanda. Em outras

palavras, sob a atual crise os lucros privados dependem diretamente dos salários

estagnados e, não menos importante, dos empréstimos contraídos pelos trabalhadores

substituindo o aumento dos salários pelo aumento do crédito.

O processo de financeirização trouxe um desvio crescente de fundos da produção e

emprego fazendo com que, progressivamente, a economia global dependesse cada vez

mais da financeirização para o crescimento. Entre 1980 e 1992, por exemplo, a

formação de capital fixo cresceu numa taxa anual de 2,3% enquanto os ativos

financeiros cresceram 6%. O volume diário total de transições financeiras globais em

1983 era de 2,3 bilhões passando, em 2001, para 130 bilhões. Com esses processos

correntes, diversos “produtos derivados” do sistema financeiro começaram a operar na

dívida pública dos EUA de forma crescente. Como conseqüência geral, a atuação do

Estado neoliberal foi voltada para garantir as melhores condições para a expansão

financeira a partir de um receituário voltado para a liberalização financeira

global, seja por meio da ação direta dos países imperialistas ou de suas

instituições internacionais como o Banco Mundial ou o FMI.

Ao mesmo tempo em que o capital produtivo entrou numa dialética em relação ao

capital financeiro, a extração da mais-valia depende cada vez mais de uma dialética

entre os salários e os créditos tomados pelos trabalhadores. Esse processo se

acelerou drasticamente nos EUA nas décadas de 1990 e 2000 estourando na crise

comumente chamada de subprime. Com os bancos necessitando dar mais crédito aos

trabalhadores, muitos deles foram dados com altíssimos riscos. Esse não foi um ato

falho de alguns “bancos irresponsáveis”, mas sim o desdobramento lógico do

aceleramento da dialética entre salário e crédito que se tornou cada vez mais vital

para o crescimento dos lucros financeiros e não-financeiros. Portanto, no centro da

crise nos EUA está a queda do consumo familiar pelas décadas de estagflação salarial

e acumulação de dívidas, na maioria das vezes, facilitada pelas operações de crédito

altamente duvidosas (leia-se fraudentas) pelos bancos. Naturalmente esse processo

teve o Estado como agente ativo. Foi à gestão Clinton que introduziu nos EUA as

hipotecas subprime. Elas tinham como objetivo oferecer crédito a pessoas desprovidas

dos meios de pagar a dívidas assumidas para comprar a casa própria. Foi uma

iniciativa do Estado para incorporar setores da população na “escravidão creditícia”

que até então eram inacessíveis.

A simbiose entre Estado e mercado manifesta-se quando analisamos o papel do crédito

no capitalismo contemporâneo e os mecanismos que são utilizados para garantir sua

expansão. A função do Estado é dupla: a disponibilidade contínua de crédito e as

condições dos consumidores de obtê-lo. A exploração dos consumidores e da força de

trabalho são dois lados da mesma moeda da apropriação e distribuição da mais-valia

no capitalismo contemporâneo. Por isso que a salvação dos acionistas que especulam

sobre o “nível de consumo” das empresas “produtivas” como um objetivo primordial do

Estado demonstra não uma fraqueza do capitalismo. Longe disso estamos presenciando

uma ofensiva das finanças contra a totalidade da classe trabalhadora com o aval do

Estado capitalista.

A fase creditícia da acumulação capitalista está se reestruturando e não se

esgotando terminalmente. Hoje a prosperidade é vendida pelos capitalistas

industriais e financeiros em duas palavras santas: austeridade e crédito[2]. Estado

necessita intervir para recapitalizar as empresas emprestadoras e seus devedores com

o objetivo de garantir a crescente circulação global de crédito. Muito se falou em

“regulamentação” do sistema financeiro para se adequar aos interesses da economia

“real”. Foi um ótimo apaziguador dos ânimos por hora, mas é fundamentalmente pura

retórica. Parafraseando Marx, quem regula os reguladores do sistema financeiro senão

os próprios financistas e seu comitê do Estado? As medidas que os governos tomaram

não buscaram apenas recapitalizar os bancos para deixá-los em condições de ampliar

suas atividades “normais” que, paradoxalmente, são os fundamentos da atual crise?

Não seria exagero algum dizer que o sistema do capital saiu do controle e que, dessa

forma, o horizonte da crise é acumulativa, de longo prazo, com características

endêmicas, simultâneas no mundo e altamente destrutivas. Não é a toa que passamos da

etapa de anunciação de planos de reativação econômica na ordem dos trilhões para

mega-planos de austeridade fiscal articulada pelo Estado (inclusive sob governos

socialdemocratas/reformistas “de esquerda” como na Grécia, Portugal, Espanha, EUA,

etc.) que, endividado pela ajuda “nacionalização da bancarrota capitalista”,

encontra crescentes dificuldades de superar sua crise junto com o mercado efetuando

medidas crônicas contra o trabalho incluído, entre elas, mais financeirização do

capital. Em países como o Brasil isso fica claro.

A partir de julho de 2010 o capitalismo brasileiro entra numa nova fase de sua

crescente inserção nas finanças internacionais. Desde a redemocratização do país

está ocorrendo uma progressiva e crescente abertura do país ao capitalismo

financeiro internacional incentivando a crescente porção deste tipo de capital no

país e seu papel do “crescimento do país”. O governo Lula (iniciado em 2002) foi a

síntese desta transição: presidente sindicalista, herói nacional dos trabalhadores,

a democracia em pessoa, pai dos pobres e mãe dos ricos. Ao mesmo tempo em que

conseguiu suspender a luta de classes no país pela institucionalizanção petista do

Estado elevou a consciência “terceira via fukuyamista” a política nacional e

internacional. Um líder mundial contra a fome e a favor da expansão do capital

financeiro sem precedentes na história nacional[3].

O governo Lula além de aumentar a renda das classes mais baixas para sua entrada no

mundo do consumo também está agilizando formas mais fáceis para a expansão do

crédito. Por exemplo: até julho de 2010 existia uma exclusividade entre a

credenciadora Cielo e a bandeira Visa. Isso acabou, pois representa uma reserva de

mercado que necessita ser colonizada pelo capital. É um novo pasto que, nos países

mais desenvolvidos, está sofrendo um esgotamento profundo. Está se estimulando o

crescimento do setor de cartões de crédito. A novidade inclui a aceitação de

diferentes cartões e de diferentes bandeiras num aumento generalizado da

concorrência. Espera-se que esse mercado cresça cerca de 20% por ano movimentando

R$534,74 bilhões em 2010, com 7,1 bilhões de transações de crédito e débito.

Naturalmente o setor propõe como regulação uma “autoregulação”. Todos ficaram

felizes, inclusive aqueles que anteriormente monopolizaram o setor já que, afinal,

abre-se um novo estágio da expansão do crédito sem precedentes no capitalismo

democrático-petista brasileiro e sua crescente financeirização do crescimento.

Neste estágio de monopolização do crédito no Brasil que, do ponto de vista do

capital, está esgotada, necessita de abertura econômica e política. Só a Cielo está

hoje (julho de 2010) em 1,7 milhões de estabelecimentos e tem filiado uma média de

300 mil novos varejistas por ano. Um representante da empresa de crédito disse

acerca destas mudanças o seguinte: “o crescimento do mercado irá compensar a

possível perda da participação que as credenciadoras venham a ter”. No primeiro

trimestre a Cielo registrou 927,6 milhões de transações com cartões de crédito e

débito, 17,6% mais que no mesmo período no ano anterior, elevando o volume

financeiro das transações para R$ 58,8 bilhões, alta de 23,2%. Analistas acreditam

que em dez anos seja possível dobrar o uso de cartões no país. Hoje ele atinge 22%

do consumo das famílias brasileiras em comparação com 45% nos Estados Unidos. O

principal inimigo para tal empreitada não são as empresas produtivas e sim o cheque

e o dinheiro que somam cerca de 80% dos meios de pagamento. Essa é uma luta

histórica que se encontra em atividade atualmente. Segundo a FEBRABAN, numa última

década, o número de cheques caiu de R$2,6 bilhões em 2000 para R$1,2 bilhões em

2009: uma retração de 53,84%. Inversamente está o uso de cartões. Segundo a ABECS o

número de transições com cartão de crédito aumentou de R$571,1 milhões para R$2,54

bilhões: uma elevação de 344,83%. Com os cartões de débito o aumento foi maior.

Passou de R$206,5 milhões para R$2,41 bilhões no mesmo período, registrando um

aumento de 1.069,9%! As estimativas apontam para um crescimento constante, chegando

a R$2,96 bilhões de transações com cartão de crédito e R$2,84 bilhões com cartão de

débito em 2010. Por mais que o cheque o dinheiro ainda representem 80% das

transições existe uma tendência de progressiva quebra com a expansão do mercado de

crédito.

Já nos EUA antagonismos cada vez mais explosivos emergem. Com uma enorme desilusão

sobre a capacidade de administração com o objetivo de reverter às tendências

negativas em ação no país (desindustrialização, estagnação salarial, queda da classe

média, desemprego, super-endividamento das famílias, das localidades e dos estados,

ampliação dos déficits federais, guerras contra o “terror”, desastre ecológico

incontrolável, apoiando golpes de Estado como no caso de Honduras e ataques

militaristas de Israel, etc.), Obama é cada vez mais (somente) o primeiro presidente

negro dos EUA. Desde 2008 o ambiente de uma grande parte dos norte-americanos e

imigrantes não cessou de se degradar, por mais que ideologia do “pior já passou”

seja praticamente permanente. Como mapeia um relatório do GEAP, o desemprego real

situa-se no mínimo entre 15% e 20% e atinge 30% a 40% nas cidades e regiões mais

afetadas pela crise. Nunca tantos americanos foram dependentes dos selos de

alimentação do governo federal que doravante contribui num nível jamais atingido

para os rendimentos das famílias estadunidenses. Paralelamente, os estados são

obrigados a multiplicar os cortes orçamentais e a suprimir serviços sociais de todo

gênero, agravando ao mesmo tempo o desemprego. E estes fenômenos desenrolam-se no

momento em que o impacto do plano de estímulo econômico da administração Obama é

suposto estar no seu máximo! Esse processo também é acompanhado por uma concentração

de renda crescente: entre 2000 e 2006, nos EUA os 10% mais ricos da população viram

sua renda crescer 32% enquanto a média dos trabalhadores caiu 1,1% em termos reais

sob um crescimento de 18% da economia. No caso do 1% mais rico, o crescimento foi de

203% e, para o 0,1% do mais alto da pirâmide de renda, houve o estrondoso aumento de

425%.
Recentemente a pequena cidade de Maywood, no sul da Califórnia, concebeu uma saída

para resolver sua crise orçamentária. A cidade está dissolvendo sua força policial e

dispensando todos os funcionários do setor público. Isso mesmo. Maywood optou pela

solução mais radical: terceirizar a contratação de todos os serviços públicos,

inclusive os mais básicos. Essa experiência não é um desvio. Ela é, na realidade, o

horizonte último para diversas cidades dos EUA e no mundo. As projeções para o

déficit combinado dos Estados apontam para US$ 112 bilhões em junho de 2011. O

déficit maior é o do Estado de Califórnia com um rombo de cerca de US$ 19 bilhões.

Uma das medidas para elevar as receitas é a legalização da maconha que será

submetida aos cidadãos nas eleições em novembro além da adoção de placas para

automóveis em tecnologia digital capaz de exibir propaganda nos veículos em

movimento (?). A solução é a mesma em todo o mundo: austeridade social e, para quem

pode, buscar por novas colonizações inimagináveis como no “capitalismo de choque”

que ocorreu pela catástrofe do Katrina ou no Haiti. Assim os Estados Unidos terão

que aumentar as taxas e diminuir os gastos, do mesmo modo que Grécia e Espanha além

de ampliar e transformar a “guerra sem fim ao terror” numa amplitude global. Na

Grécia os pacotes de austeridade pretendem reduzir o déficit fiscal em 13,6% do PIB

por meio de cortes de investimentos, redução dos benefícios aos aposentados e

mudanças nas regras trabalhistas que permitiram que as empresas demitam com mais

facilidade. Na Letônia, depois que o parlamento impôs a austeridade em 2008, foi

deposto pelos protestos populares em 2009 – tal como na Islândia. Entretanto a

“saída” foi apenas outro “regime de ocupação” a favor dos interesses da banca

estrangeira. Como disse Michel Husson, está a desdobrar-se uma Guerra Social à

escala global – não a guerra imaginada no século XIX, mas uma guerra das finanças

contra economias inteiras, o imobiliário, o governo, assim como contra o trabalho.

Isto está a acontecer do modo habitualmente lento em que ocorrem as grandes

transições históricas. Mas, tal como em conflitos militares, cada batalha parece

frenética e dispara zig-zags selvagens no mundo das que a criação de dívida tanto

nos setores governamentais como privado bolsas de ações e títulos e nos mercados de

câmbios. É um processo que faz parte da crescente simbiose entre capital e Estado

contra a ampla classe trabalhadora atual.
Lembremos que as dívidas públicas também estimulam a economia. O dispêndio

deficitário pelo governo é uma das respostas keynesianas para recessões, pondo novos

dólares em circulação para criar "procura" (a experiência dos Estados Unidos durante

a Grande Depressão indica que o dispêndio deficitário keynesiano por si próprio não

resolve problemas dos ciclos econômicos mais severos. Não foi o keynesianismo e sim

a Segunda Guerra Mundial que catapultou a economia americana para fora da Grande

Depressão!). Como calculam os companheiros da Montly Review, na década de 1970 a

dívida ativa estadunidense era cerca de 1,5 vezes a dimensão da atividades econômica

anual do país (PIB). Em 1985, era o dobro do PIB. Em 2005, a dívida total dos EUA

era quase 3,5 vezes o PIB do país. Entretanto à medida que a dívida total cresce

cada vez mais, ela parece estar a ter menos efeitos estimulantes sobre a economia.

Embora não haja relacionamento exato entre criação de dívida e crescimento

econômico, na década de 1970 o aumento no PIB era cerca de 60 centavos por cada

dólar acrescido de endividamento. No princípio de 2000 esta proporção havia

diminuído e aproximava-se dos 20 centavos de crescimento de PIB por cada dólar

adicional de endividamento. Juntamente com a explosão de dívida tem-se verificado o

crescimento excepcional das finanças e da especulação financeira na economia

americana — estimulada significativamente pelos níveis de endividamento cada vez

mais elevados. As finanças (bancos, firmas de investimento, companhias de seguros e

consórcios imobiliários) desenvolvem um número sempre crescente de novas maneiras de

tentar fazer dinheiro com dinheiro — D–D' na formulação de Marx. Esses mecanismos se

estendem até o absurdo. Por exemplo: em 1975, 19 milhões de ações foram comerciadas

diariamente na Bolsa de Valores de Nova York. Em 1985 o volume havia alcançado 109

milhões e em 2006, foram 1600 milhões de ações com um valor de mais de US$ 60 mil

milhões. Ainda maior é a comercialização diárias nos mercados mundiais de divisas, a

qual passou de US$ 18 mil milhões por dia em 1977 para a atual média de US$ 1,8

milhão de milhões por dia. Isto significa que a cada vinte e quatro horas do dia o

volume em dólares das divisas comerciadas equivale a todo o PIB mundial anual!
Esse panorama, é claro, tem profundas ligações com a China – o horizonte do

capitalismo hoje. No ano de 2001 não temos apenas os ataques de 11 de setembro e a

declaração de “guerra ao terror sem fim” por George W. Bush. 2001 também é o ano de

entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), que representa o ponto

mais avançado das medidas para fazer do planeta um espaço único de valorização de

capital. A extensão da globalização a Ásia criam efeitos paradoxais: com a

integração da China – e em menor grau da Índia – à economia mundial, a situação dos

trabalhadores tende a piorar. Por quê? A inserção da China – e seus baixos salários

- causa a competição direta entre os trabalhadores atuando como um excesso

estrutural de mão-de-obra incidindo sobre os trabalhadores os ajustes necessários as

novas condições de competição internacional.

A importância do comércio exterior para o crescimento chinês coloca como desafio a
expansão de mercados que, com a crise, tendem a diminuir sua demanda. Os EUA são

hoje o maior mercado da China. Ou a China compensará a desaceleração da demanda

estadunidense voltando-se para outros mercados ou pode chegar um momento, como na

Coréia em 1997, onde os efeitos da superacumulação são imediatamente transformados

em crise aberta. Sabemos a estabilidade macroeconômica mundial encontra-se na China.

Como notou Aglietta, o governo chinês decidiu até esfriar o motor do investimento em

setores como o imobiliário, siderúrgico e automobilístico. Apesar destas medidas

existe uma grande dificuldade em diminuir esses investimentos, principalmente

imobiliário, na construção de infra-estruturas rodoviárias e na construção de outras

fábricas. Essa situação se deve, em parte, as províncias e aos industriais locais

que buscam afirmar sua autonomia diante do poder central.

Os rumores sobre a desaceleração da economia chinesa junto com a piora da

“confiança” do consumidor nos EUA e os tropeços do euro estão causando espasmos nas

bolsas de todo o mundo. O temor de um súbito resfriamento da economia chinesa e seus

desdobramentos sobre a importação de commodities está derrubando as cotações de

produtos como petróleo e metais, com reflexo direto nas ações de companhias

domésticas ligadas a esses setores. E daí que hoje estamos vendo um crescente número

de problemas que não tem solução senão, novamente, a economia da guerra, o estado de

emergência fiscal, a ofensiva do capital financeiro contra os trabalhadores e, não

menos importante, o renascimento da luta de classes sob novas bases sociais,

organizacionais e políticas com um horizonte amplo e abrangente para além do

capital.

Fernando Marcelino

[1] O estado de exceção permanente encontra-se, entre outros, no mundo do trabalho

com as práticas just-in-time sob a forma de autocontrole do trabalhador onde, se

desdobrando em múltiplas dimensões, trazem a novidade histórica do período

toyotista: as empresas envolvem os trabalhadores no just-in-time e, ao mesmo tempo,

os trabalhadores são envolvidos pela empresa com as práticas just-in-time. Baseada

numa “aposta da ética individual” se produz uma moral baseada exclusivamente na

realização do indivíduo em detrimento dos interesses coletivos, buscando um

engajamento dos recursos subjetivos do trabalhador a recurso da produtividade da

empresa baseada num novo tipo de vínculo social. O outro lado do just-in-time é a

redução de estoques e procuras organizando as funções segundo a lógica ditada pela

demanda do mercado.



[2] Essa etapa do desenvolvimento do capital, muito bem pensada por Marx, apresenta

uma nova dimensão política da luta entre o campo industrial produtivo e o campo

financeiro. A novidade histórica da financeirização global é que, no mercado

financeiro, não existe luta de classes já que “confrontam-se apenas emprestadores e

prestadores. Nesse campo, a mercadoria tem a forma invariável de dinheiro,

desvanecendo todas as figuras particulares do capital de produção e circulação em

que se aplica – “passa o capital a existir na figura que não se diferencia, do valor

autônomo, sempre igual a si mesmo – o dinheiro. Anula-se a concorrência entre

diversos ramos, procurando todos conjuntamente tomar dinheiro emprestado”. Para o

capitalista financeiro, o autêntico produto do capital não é a mais-valia, e sim o

lucro menos o juro, a parte que resta do lucro, depois de pagar o juro. A expansão

desse processo global D – D’ iniciou uma transformação na funcionalidade do campo

produtivo que envolve, em última instância, o desaparecimento do capitalista no

processo de produção, agora como figura supérflua e existindo apenas como

funcionário. Essa crescente dimensão do campo financeiro redimensiona o campo

produtivo com o progressivo “fim da representação do capital perante o caráter

antagônico do trabalho”. Como não existe luta de classes entre o capitalista

industrial e financeiro, por mais que tenham estratégias até contrárias formando uma

unidade dialética, isso cria uma confusão política radical na fábrica contemporânea

que cada vez mais necessita da intervenção do Estado para “prosperar”. Fazendo um

adendo, diria que estamos entrando silenciosamente numa nova etapa do capitalismo

mundial. O Estado forte e autoritário está novamente emergindo numa espécie de

“chineização global”. Não como as experiências fascistas do século XX, mas podendo

ser inserido na própria democracia liberal. A democracia poderá continuar

formalmente, mas as decisões chave para a sustentação da economia mundial terão,

cada vez mais, um caráter autoritário. Nos Estados Unidos e em outros países do

mundo, o que aconteceu com a democracia liberal quando foi necessária a “ajuda”

astronômica do Estado diante do derretimento do sistema financeiro no dia 15 de

setembro de 2008? Não foi exatamente o mesmo que George W. Bush fez no 11 de

setembro de 2001? Em poucas semanas, o impossível foi feito: um dinheiro na ordem de

bilhões e bilhões foi aplicado para o salvamento da economia numa espécie de

suspensão da ordem democrática. Um dinheiro irrepresentável foi facilmente aceito

para “reparar a economia” pela suspensão da ordem. Portanto, o tempo democrático é

longo demais para as prioridades da crise atual.



[3] Na leitura de Kojin Karatani Marx entendia a “ditadura da burguesia” da seguinte

forma: é o sufrágio universal, e não uma violência direta que programam regras

sociais, que afirma a divisão estrutural da sociedade entre os detentores dos meios

de produção e os expropriados de seus meios de trabalho. Com o sistema

representativo pessoas de todas as classes participam das eleições. Além disso,

nesse sistema os indivíduos são, pela primeira vez, separados em princípio de todas

relações de classe e relações de produção. Dessa forma, esse mecanismo apaga as

relações de classe ou de dominação pela redução temporária das pessoas em

“indivíduos livres e iguais”. É esse mecanismo que funciona como ditadura da

burguesia onde os indivíduos são livres somente no momento em que as relações

hierárquicas são suspensas.



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