sexta-feira, 23 de julho de 2010

Para quem pensa que juros é só questão que deve ser abordada por economistas vale a minha insistência sobre o tema

Agência Carta Maior - 20/07/2010

Juros: crônica de uma elevação anunciada

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, anunciará que, a partir do dia 22 de julho de 2010, a taxa de juros com a qual o governo federal remunerará os agentes do sistema financeiro pela compra de seus títulos públicos será de 11% ao ano.

Paulo Kliass

Eu juro para vocês que gostaria de mudar um pouco de assunto, sair de temas um tanto quanto recorrentes como a questão financeira e a taxa de juros. Mas, infelizmente, a agenda da política econômica do governo me impede de discorrer sobre assuntos, digamos, mais amenos.

Enquanto escrevo este artigo, a grande imprensa trata os futuros resultados da próxima reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central (BC) como favas contadas. Hoje, dia 19, segunda-feira, de acordo com sua agenda na página na instituição, o Presidente do BC tem uma “reunião de mercado no Banco Central em Brasília”, seja lá o que isso signifique. Em seguida, nos dias 20 e 21, participa e preside a reunião do COPOM. Tal liturgia ocorre, quase que de maneira religiosa, a cada 45 dias, quando os resultados mais aguardados pelo tal do “mercado” e pelos demais membros “normais” da sociedade brasileira são a definição da taxa de juros SELIC e o texto na íntegra da ata da reunião do nobre colegiado.

Essa mesma ladainha já nos incomoda há muitos e muitos anos. E, de tanto ela ser repetida, associada à falta de coragem política dos governantes em contestar essa mentira travestida de “onipotência científica”, o Brasil continua sua trajetória desgovernada rumo aos efeitos maléficos do monetarismo ortodoxo, completamente orientado para satisfazer, de forma prioritária, as vontades do sistema financeiro e seus beneficiados em nossa sociedade.

As manchetes dos cadernos de economia dos grandes meios de comunicação anunciam, para quem quiser ler e ouvir, que o COPOM deverá elevar ainda outra vez a taxa básica de juros do governo. Não satisfeito com os atuais 10,25% ao ano, o campeão mundial da taxa de juros pretende aumentar ainda a sua distância em relação ao pelotão dos retardatários, para manter com segurança o “maillot jaune”, a tal da camiseta amarela conferida ao ciclista primeiro colocado nas etapas do “Tour de France”. De acordo com as fontes consultadas pela imprensa especializada, não deverá haver mistério quanto à proposta a ser aprovada pela reunião pelos mesmos membros da diretoria do BC, que se traveste com as pompas de COPOM a cada 6 semanas e mais três dias. O Presidente Henrique Meirelles anunciará que, a partir do dia 22 de julho de 2010, a taxa de juros com a qual o governo federal remunerará os agentes do sistema financeiro pela compra de seus títulos públicos será de 11% ao ano. Que beleza....

Agora vamos buscar as verdades nos não ditos, nas entrelinhas, na realidade dos fatos e nas conseqüências econômicas de tal violência. O estoque de nossa dívida pública se aproxima do valor de R$ 1,6 trilhão. Uma operação singela de cálculo aritmético nos oferece o quadro de aumento das despesas do Tesouro e do Orçamento em razão de tal elevação. Esse simples aumento de 0,75% na taxa SELIC elevará tais gastos em R$ 12 bilhões ao longo dos próximos 12 meses. O que significa uma despesa extraordinária que, por si só, quase se aproxima dos valores totais previstos no Orçamento de 2010 para o conjunto de um programa social como o Bolsa Família.

Uma outra maneira de avaliar o impacto dessa política monetária destruidora e irresponsável é o resultado estimado de despesas do orçamento federal em 12 meses. Os gastos do governo federal provocados por mesmos 11% da taxa SELIC em relação à sua divida de R$ 1,6 trilhão serão de R$ 180 bilhões ao longo de 12 meses. E depois o governo manda dizer, a cada demanda que aparece da sociedade e dos movimentos sociais, que a “política séria e de extrema austeridade na conduta fiscal” não lhe permite fazer gastos “irresponsáveis” com saúde, educação, previdência social e similares. Isso porque o seu compromisso é o de alcançar a tão glorificada meta de superávit primário. Uma loucura!

Aguardemos ansiosamente o pronunciamento dos candidatos e das candidatas ao pleito de outubro a respeito desse pequeno detalhe da vida nacional. Qual a avaliação que fazem da condução de tais propostas ao longo dessa década e meia? O que apresentam como alternativa para reduzir o custo social, econômico e política dessa aventura inexplicável, que transfere recursos do conjunto da sociedade para beneficiar setores afortunados de sua elite?

Não há espaço aqui para debater em detalhes a respeito das bases teóricas que sustentam tal visão do fenômeno econômico e das soluções para enfrentar as dificuldades que surgem a cada momento. De uma forma resumida, pode-se focar na questão do chamado “aquecimento excessivo” da demanda e dos riscos do retorno da inflação elevada, característica dos períodos anteriores ao Plano Real. Os modelos existentes por trás da política econômica implementada desde 1994 pressupõem a existência de uma meta de inflação para um período futuro (em geral, de um ano) e que, para atingi-la, o principal instrumento de que o governo federal dispõe é a fixação da taxa oficial de juros. A tal da política monetária. O pressuposto é de que taxas de juros mais elevadas atuam como inibidoras da demanda do conjunto da sociedade (menos investimentos, menos gastos públicos, menos consumo das famílias) e assim contribuem para evitar o crescimento dos preços. Isto porque estes últimos estariam em alta por um aumento desproporcional dessa mesma demanda, dita agregada, do conjunto da sociedade e da economia. Apenas quero frisar que esse enfoque é por demais restritivo e polêmico.

No entanto, a questão se coloca é mais ampla, e supera em muito a simples utilização da meta de inflação e da fixação da taxa de juros. Em primeiro lugar, porque, ao contrário do que pretende nos enganar a grande imprensa e nos iludir os responsáveis pela condução da política econômica, não existe nenhum tipo de “neutralidade científica” na tomada desse tipo de decisão. Todas essas medidas são absolutamente marcadas pelo elemento da “Política” com pê maiúsculo mesmo. O argumento muitas vezes utilizado de que isso é “coisa complicada, que só os economistas entendem” não resiste a um debate entre as diversas correntes do pensamento econômico, que oferecem explicações e soluções distintas para cada fenômeno abordado.

A grande imprensa retrata as decisões de anúncio da nova SELIC como tão somente o surgimento de um elemento a mais a levar em conta na tomada de decisões dos operadores do mercado das finanças e da economia. Um item a mais, que se soma a outros tantos como taxa de câmbio, taxa de inflação, nível de reservas internacionais, crescimento do PIB, etc. O fato, porém, é que este simples anúncio transcende em muito o que dele se esperava nos modelos econômicos teóricos. A divulgação da SELIC não é apenas um ato de tornar explícita a intenção do governo de sinalizar para o mercado o quanto ele, governo, acha que deveria ser um nível adequado da taxa de juros para reduzir a eventual demanda aquecida. O governo participa efetivamente da implementação desse novo patamar de juros e isso provoca, entre outros, o custo orçamentário acima mencionado. É, repitamos aqui, uma decisão absolutamente carregada de política, como se o governo estivesse a nos dizer: nossa prioridade é gastar com o lado financeiro, pois para esse tipo de despesa com juros nunca haverá limite. Já para as outras despesas, com o chamado lado real (não financeiro) da economia, a nossa disposição não é exatamente a mesma, afinal há sérias restrições na condução da política fiscal e não podemos ser irresponsáveis na execução do gasto público, pois os recursos orçamentários são limitados e tome blá-blá-blá-blá...

O ritual das preliminares da reunião do COPOM envolve a divulgação do conhecido Boletim Focus, em que aquela entidade mágica e inatingível chamada “mercado” apresenta suas expectativas, a partir de uma estimulação do próprio BC. Trata-se da divulgação dos resultados proporcionados pelos inúmeros modelos econômicos e econométricos que circulam pelas empresas de consultoria e pelas áreas econômico-financeiras dos bancos e das empresas do setor. Perspectivas quanto à inflação futura, projeções de crescimento do PIB, possibilidades de desempenho setorial e das contas externas, perspectivas do desempenho internacional. Em suma, o mesmo tipo de modelo sério e infalível que oferecia toda a garantia à economia norte-americana e européia até a ante-véspera da crise que se iniciou em 2008. Todos (os que foram convidados, obviamente...) têm direito a dar seus palpites e o COPOM costuma fazer uma “média” das opiniões oferecidas para levar em conta em suas decisões. Isso é que a grande imprensa costuma chamar de “na opinião do mercado”...

Mas o ponto a destacar nesse final é que há outras medidas a serem tomadas sem que o sacrifício imposto ao conjunto da sociedade seja de tal natureza. Durante a época áurea do neoliberalismo, havia uma sigla para os modelos que defendiam tal terapia ortodoxa. Eram conhecidos nos meios econômicos e financeiros como TINA, do inglês “there is no alternative”. Ou seja, o argumento era de que não haveria alternativa ao receituário neoliberal e muito menos aos sofrimentos impostos aos países que adotassem suas políticas. Como se os proponentes dissessem: “sim, nós sabemos e lamentamos que o processo seja doloroso; mas, infelizmente, não há alternativas”.

No entanto, a crise recente mostrou que, sim, existem alternativas. E várias. Nesse caso específico, um dos pontos chaves é mexer também na política cambial e na sistemática da conta de capitais. Teria quase o mesmo efeito dessa política de taxas de juros elevadíssima uma decisão que levasse em conta a desvalorização da taxa de câmbio do nosso real em relação ao dólar norte-americano e ao euro, por exemplo. É sabido e reconhecido que o nosso câmbio está sobrevalorizado, com todos os impactos negativos de uma verdadeira ilha de fantasia tupiniquim. Exportações desestimuladas, importações altamente favoráveis, ameaças de desindustrialização de setores importantes de nossa economia, riscos em nossas contas externas. E dá-lhe oferecer atrativos ao capital especulativo internacional que venha para cá, aportar em nossas praças, para ajudar a fechar o balanço a cada final de dia, de semana, de mês, de ano. Qual o principal chamariz? A taxa de juros mais alta do mundo! E tudo isso como se essa decisão, apresentada como neutra e isenta, não trouxesse custos ao nosso orçamento público e nem ao conjunto da economia.

Combinada ao realismo da necessária desvalorização cambial, faz-se necessário também implementar um maior controle sobre a absoluta liberdade de circulação de capitais em nosso território. Cabe uma política de taxação sobre o recurso especulativo que para cá venha em busca apenas da remuneração apetitosa do setor financeiro no curto prazo. A exemplo do que faz a maior parte dos países, estimular os valores que venham para uma permanência de longo prazo, no setor real e produtivo. Mas, assim como os outros fazem, deveríamos reduzir a nossa característica de cassino financeiro, impondo regras relativas a prazos de permanência e impostos a serem recolhidos para os valores orientados exclusivamente pelo faro do curto prazo.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

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