quinta-feira, 29 de julho de 2010

Esse é o capitalismo: uma reflexão acerca do capital e trabalho

Que capitalismo vive no mundo hoje?

escravidão creditícia e expansão destrutiva do capital

O capitalismo é marcado por contradições que não podem se resolver dentro de seus

fundamentos estruturais. Na realidade, o capitalismo se destaca por criar problemas

e não por solucioná-los. Sendo coerente com sua “razão de ser” o capital cria

problemas que não pode enfrentar ampliando e acumulando-os de forma crescente. É um

sistema totalizador e parasitário. Marx encontrava no comunismo o desatar

irreversível dos nós que são criados pelo capitalismo a partir de seu esgotamento

histórico marcado por seu desdobramento mundial, profundas desigualdades,

catástrofes naturais, desemprego e, não menos importante, um processo de

financeirização global, desvanecimento do capitalista industrial, uma rede de

crédito crescentemente ampliada e complexa para “solucionar” suas crises e a

ascensão de auto-organizações do trabalho em massa que coloquem em xeque tanto o

capital como o Estado.

Rosa dizia que o capitalismo só pode avançar enquanto existirem “áreas virgens”

abertas à expansão e acumulação de capital. Toda vez que são “capitalizadas” essas

economias “não-capitalistas” as contradições do capital se potencializam já que se

torna necessário procurar novas áreas de colonização do capital quando elas se

esgotam. Ao invés de resolver suas contradições, cada momento expansivo do capital

rumo às “áreas virgens” aprofunda suas contradições. Por mais que possa prosperar

por certo período, sua tendência expansiva esgota (cada vez mais rápido) as fontes

de sua própria alimentação que já não são suficientes. Aí emerge a crise. As crises

do capitalismo moderno se manifestam tanto como esgotamento como necessidade de

colonizar novas áreas virgens para manter seu movimento de acumulação e expansão.

As crises do capitalismo acompanham seu desenvolvimento pautado tanto na valorização

de capital em detrimento ao trabalho socialmente necessário para a produção de

mercadorias em áreas não-capitalistas como nas crescentes dificuldades da própria

valorização: quanto mais se valoriza, mais o capital encontra entraves a valorização

sendo um imperativo colonizar áreas “desconhecidas” pela lógica do capital. Sem esse

movimento o capitalismo não vive.

Uma das principais áreas que o capitalismo tem se expandindo nos últimos 30 anos é

no terreno do crédito. O capital necessita cada vez mais vender o presente – “não

adie a realização de seu desejo!” – para sobreviver. Com crédito pague depois e

desfrute agora. Obtenha o que quiser quando desejar e não quando ganhar o suficiente

para comprá-las. Não pense no “depois”. Endivide-se agora e atenda prontamente suas

aspirações. Max Weber e seu capitalismo baseado na privação, no gasto com prudência,

nas economias na caderneta de poupança e na paciência para que só após juntar o

suficiente se gaste faz parte de uma época que o próprio capitalismo enterrou e

deixou para os livros de história.

Hoje vivemos numa era que o capitalismo se mantém mediante a “escravidão creditícia”

onde a dívida contraída foi transformada numa fonte permanente de lucros. Quanto

mais fácil adquirir crédito mais difícil é se livrar das dívidas que se amontoam em

nome de “dinheiro barato”. Vende-se crédito das mais diferentes formas imagináveis

ao mesmo tempo em que se estimula que nunca se faça o “pagamento final”. Não estar

devendo não interessa aos bancos. Do ponto de vista daqueles que emprestam dinheiro,

a ausência de débitos é terrível. Os emprestadores atuais não querem seu dinheiro

por inteiro e nem tem prazos pré-fixados ou não-renováveis. Ao contrário, oferecem

mais crédito para pagar a velha dívida e ainda ficar com algum dinheiro que

eventualmente se tornará uma nova dívida. O cliente perfeito é aquele que nunca paga

sua dívida inteiramente e, além disso, fica cada vez mais preso em dívidas que

crescem. Às vezes as dívidas podem ser até amortizadas para que se possa pagar

indefinidamente por elas. São dívidas em cima de dívidas que prendem os sujeitos num

círculo vicioso.

A chamada “crise do crédito” nos EUA não foi resultado do insucesso dos bancos. Ao

contrário, foi seu extraordinário sucesso em transformar um incontável número de

seres humanos – homens, mulheres, jovens, velhos – numa “raça de devedores” eternos

numa autoperpetuação do “estar endividado” a medida que fazer mais dívidas é visto

como único instrumento verdadeiro de salvação das dívidas já contraídas. Nunca foi

tão fácil na história da humanidade ingressar nessa condição assim como escapar dela

jamais foi tão difícil como hoje. Para Zigmunt Bauman, a atual contração do crédito

não é sinal do fim do capitalismo, mas apenas da exaustão de mais um pasto. A busca

de novas pastagens terá início imediatamente alimentado, como no passado, pelo

Estado capitalista, por meio da mobilização forçada de recursos públicos. Novas

“terras virgens” serão encontradas e novos esforços serão feitos para explorá-las,

por bem ou por mal, até o momento em que sua capacidade de engordar os lucros dos

acionistas e as gratificações dos dirigentes for exaurida. A grande questão é saber

quando se esgotará a lista de terras passíveis de “virginização secundária” do

capital e quando as explorações, por mais frenéticas e engenhosas que sejam,

deixaram de garantir um alívio temporário. De qualquer forma, uma coisa é certa: o

capital nunca irá simplesmente desistir de passar de uma caçada a outra enquanto

conseguir alavancar novas chances de adiar o momento da verdade, mesmo que por pouco

tempo e a qualquer custo (social, econômico, político, energético, bélico, etc.). A

plasticidade infinita da expansão do capital necessita tomar para si aquilo que é

exterior, não importa se é o inconsciente, a natureza, a cidade, o interior dos

corpos, a biodiversidade, biogenética, etc. Tudo que não faz parte de sua lógica é

uma questão de tempo e de luta política. Não é verdade que a legalização da maconha

está sendo colocada em pauta para recolher mais impostos na Califórnia diante do

estado de emergência fiscal e que a privatização de presídios e lixões já é

realidade em diversas áreas do mundo?

Sabemos, desde Marx, que o capital é um giro contínuo que tem como produto o lucro.

Por isso, uma crise decorre do alargamento da capacidade de produção acompanhado

duma relativa restrição dos salários que impõem uma limitação real no poder de

compra disponível para a demanda da produção sempre ampliada. Como conseqüência, os

lucros são comprimidos e necessitam se expandir para outros canais, como o

financeiro. Daí decorre também novas formas de crédito que são desenvolvidas para

perpetuar essa contradição ampliando a escravidão assalariada com a “escravidão

creditícia”.

O capital é auto-reprodução de dinheiro pelo revolucionamento do processo produtivo

de forma sempre ampliada. A primeira formulação de Marx é D-M-D’ que representa a

atividade do capital como auto-expansão. Para Kojin Karatani, Marx localiza como

salto mortale desse processo o momento M-D’, quando é determinado, ou não, se a

mercadoria é vendida para a realização do valor. Sem esse salto mortale a

auto-expansão da produção de capital é impossível. Para escapar desse crítico

momento e continuar o movimento de auto-reprodução, o capital necessita criar um

pacto artificial que presume que a mercadoria já foi vendida. Isso se chama crédito.

Crise, portanto, não é apenas causada pelo curto-circuito da acumulação de capital

devidas as mercadorias que não são vendidas, mas principalmente pela “revelação

forçada” – no momento da liquidação final – que as mercadorias que supostamente

deviam ser vendidas não foram vendidas na realidade. A dificuldade do salto mortale

da mercadoria é solucionado apenas quando é efetuada a venda dela. O pressuposto

para a produção é seu hipotético consumo, sua realização como valor. Na produção o

valor só é criado “em si”. Sem a finalização do processo pelo consumo, essa

potencialidade não se confirma. Portanto, a dialética entre produção e consumo é o

segredo do valor.

Com o desenrolar da desaceleração econômica global desde meados de 1970, nos Estados

Unidos houve uma estagflação nos salários dos trabalhadores. Desde meados de 1970 os

salários médios reais dos trabalhadores dos EUA cessaram de subir depois de sua

ascensão histórica de 1820 a 1970. Ao mesmo tempo, a produtividade do trabalho com

novas maquinarias, pressão social, neoliberalização, novas organizações do trabalho

(toyotismo, terceirização, informalidade, nova divisão internacional do trabalho)

proporcionaram, para os capitalistas, um aumento na extração da mais-valia[1].

Juntamente com esse processo de estagnação salarial houve um aumento progressivo da

“escravidão creditícia” onde, para viver, a tomada crescente de créditos se tornou a

forma de contornar o freio salarial dos trabalhadores e ativar a demanda. Em outras

palavras, sob a atual crise os lucros privados dependem diretamente dos salários

estagnados e, não menos importante, dos empréstimos contraídos pelos trabalhadores

substituindo o aumento dos salários pelo aumento do crédito.

O processo de financeirização trouxe um desvio crescente de fundos da produção e

emprego fazendo com que, progressivamente, a economia global dependesse cada vez

mais da financeirização para o crescimento. Entre 1980 e 1992, por exemplo, a

formação de capital fixo cresceu numa taxa anual de 2,3% enquanto os ativos

financeiros cresceram 6%. O volume diário total de transições financeiras globais em

1983 era de 2,3 bilhões passando, em 2001, para 130 bilhões. Com esses processos

correntes, diversos “produtos derivados” do sistema financeiro começaram a operar na

dívida pública dos EUA de forma crescente. Como conseqüência geral, a atuação do

Estado neoliberal foi voltada para garantir as melhores condições para a expansão

financeira a partir de um receituário voltado para a liberalização financeira

global, seja por meio da ação direta dos países imperialistas ou de suas

instituições internacionais como o Banco Mundial ou o FMI.

Ao mesmo tempo em que o capital produtivo entrou numa dialética em relação ao

capital financeiro, a extração da mais-valia depende cada vez mais de uma dialética

entre os salários e os créditos tomados pelos trabalhadores. Esse processo se

acelerou drasticamente nos EUA nas décadas de 1990 e 2000 estourando na crise

comumente chamada de subprime. Com os bancos necessitando dar mais crédito aos

trabalhadores, muitos deles foram dados com altíssimos riscos. Esse não foi um ato

falho de alguns “bancos irresponsáveis”, mas sim o desdobramento lógico do

aceleramento da dialética entre salário e crédito que se tornou cada vez mais vital

para o crescimento dos lucros financeiros e não-financeiros. Portanto, no centro da

crise nos EUA está a queda do consumo familiar pelas décadas de estagflação salarial

e acumulação de dívidas, na maioria das vezes, facilitada pelas operações de crédito

altamente duvidosas (leia-se fraudentas) pelos bancos. Naturalmente esse processo

teve o Estado como agente ativo. Foi à gestão Clinton que introduziu nos EUA as

hipotecas subprime. Elas tinham como objetivo oferecer crédito a pessoas desprovidas

dos meios de pagar a dívidas assumidas para comprar a casa própria. Foi uma

iniciativa do Estado para incorporar setores da população na “escravidão creditícia”

que até então eram inacessíveis.

A simbiose entre Estado e mercado manifesta-se quando analisamos o papel do crédito

no capitalismo contemporâneo e os mecanismos que são utilizados para garantir sua

expansão. A função do Estado é dupla: a disponibilidade contínua de crédito e as

condições dos consumidores de obtê-lo. A exploração dos consumidores e da força de

trabalho são dois lados da mesma moeda da apropriação e distribuição da mais-valia

no capitalismo contemporâneo. Por isso que a salvação dos acionistas que especulam

sobre o “nível de consumo” das empresas “produtivas” como um objetivo primordial do

Estado demonstra não uma fraqueza do capitalismo. Longe disso estamos presenciando

uma ofensiva das finanças contra a totalidade da classe trabalhadora com o aval do

Estado capitalista.

A fase creditícia da acumulação capitalista está se reestruturando e não se

esgotando terminalmente. Hoje a prosperidade é vendida pelos capitalistas

industriais e financeiros em duas palavras santas: austeridade e crédito[2]. Estado

necessita intervir para recapitalizar as empresas emprestadoras e seus devedores com

o objetivo de garantir a crescente circulação global de crédito. Muito se falou em

“regulamentação” do sistema financeiro para se adequar aos interesses da economia

“real”. Foi um ótimo apaziguador dos ânimos por hora, mas é fundamentalmente pura

retórica. Parafraseando Marx, quem regula os reguladores do sistema financeiro senão

os próprios financistas e seu comitê do Estado? As medidas que os governos tomaram

não buscaram apenas recapitalizar os bancos para deixá-los em condições de ampliar

suas atividades “normais” que, paradoxalmente, são os fundamentos da atual crise?

Não seria exagero algum dizer que o sistema do capital saiu do controle e que, dessa

forma, o horizonte da crise é acumulativa, de longo prazo, com características

endêmicas, simultâneas no mundo e altamente destrutivas. Não é a toa que passamos da

etapa de anunciação de planos de reativação econômica na ordem dos trilhões para

mega-planos de austeridade fiscal articulada pelo Estado (inclusive sob governos

socialdemocratas/reformistas “de esquerda” como na Grécia, Portugal, Espanha, EUA,

etc.) que, endividado pela ajuda “nacionalização da bancarrota capitalista”,

encontra crescentes dificuldades de superar sua crise junto com o mercado efetuando

medidas crônicas contra o trabalho incluído, entre elas, mais financeirização do

capital. Em países como o Brasil isso fica claro.

A partir de julho de 2010 o capitalismo brasileiro entra numa nova fase de sua

crescente inserção nas finanças internacionais. Desde a redemocratização do país

está ocorrendo uma progressiva e crescente abertura do país ao capitalismo

financeiro internacional incentivando a crescente porção deste tipo de capital no

país e seu papel do “crescimento do país”. O governo Lula (iniciado em 2002) foi a

síntese desta transição: presidente sindicalista, herói nacional dos trabalhadores,

a democracia em pessoa, pai dos pobres e mãe dos ricos. Ao mesmo tempo em que

conseguiu suspender a luta de classes no país pela institucionalizanção petista do

Estado elevou a consciência “terceira via fukuyamista” a política nacional e

internacional. Um líder mundial contra a fome e a favor da expansão do capital

financeiro sem precedentes na história nacional[3].

O governo Lula além de aumentar a renda das classes mais baixas para sua entrada no

mundo do consumo também está agilizando formas mais fáceis para a expansão do

crédito. Por exemplo: até julho de 2010 existia uma exclusividade entre a

credenciadora Cielo e a bandeira Visa. Isso acabou, pois representa uma reserva de

mercado que necessita ser colonizada pelo capital. É um novo pasto que, nos países

mais desenvolvidos, está sofrendo um esgotamento profundo. Está se estimulando o

crescimento do setor de cartões de crédito. A novidade inclui a aceitação de

diferentes cartões e de diferentes bandeiras num aumento generalizado da

concorrência. Espera-se que esse mercado cresça cerca de 20% por ano movimentando

R$534,74 bilhões em 2010, com 7,1 bilhões de transações de crédito e débito.

Naturalmente o setor propõe como regulação uma “autoregulação”. Todos ficaram

felizes, inclusive aqueles que anteriormente monopolizaram o setor já que, afinal,

abre-se um novo estágio da expansão do crédito sem precedentes no capitalismo

democrático-petista brasileiro e sua crescente financeirização do crescimento.

Neste estágio de monopolização do crédito no Brasil que, do ponto de vista do

capital, está esgotada, necessita de abertura econômica e política. Só a Cielo está

hoje (julho de 2010) em 1,7 milhões de estabelecimentos e tem filiado uma média de

300 mil novos varejistas por ano. Um representante da empresa de crédito disse

acerca destas mudanças o seguinte: “o crescimento do mercado irá compensar a

possível perda da participação que as credenciadoras venham a ter”. No primeiro

trimestre a Cielo registrou 927,6 milhões de transações com cartões de crédito e

débito, 17,6% mais que no mesmo período no ano anterior, elevando o volume

financeiro das transações para R$ 58,8 bilhões, alta de 23,2%. Analistas acreditam

que em dez anos seja possível dobrar o uso de cartões no país. Hoje ele atinge 22%

do consumo das famílias brasileiras em comparação com 45% nos Estados Unidos. O

principal inimigo para tal empreitada não são as empresas produtivas e sim o cheque

e o dinheiro que somam cerca de 80% dos meios de pagamento. Essa é uma luta

histórica que se encontra em atividade atualmente. Segundo a FEBRABAN, numa última

década, o número de cheques caiu de R$2,6 bilhões em 2000 para R$1,2 bilhões em

2009: uma retração de 53,84%. Inversamente está o uso de cartões. Segundo a ABECS o

número de transições com cartão de crédito aumentou de R$571,1 milhões para R$2,54

bilhões: uma elevação de 344,83%. Com os cartões de débito o aumento foi maior.

Passou de R$206,5 milhões para R$2,41 bilhões no mesmo período, registrando um

aumento de 1.069,9%! As estimativas apontam para um crescimento constante, chegando

a R$2,96 bilhões de transações com cartão de crédito e R$2,84 bilhões com cartão de

débito em 2010. Por mais que o cheque o dinheiro ainda representem 80% das

transições existe uma tendência de progressiva quebra com a expansão do mercado de

crédito.

Já nos EUA antagonismos cada vez mais explosivos emergem. Com uma enorme desilusão

sobre a capacidade de administração com o objetivo de reverter às tendências

negativas em ação no país (desindustrialização, estagnação salarial, queda da classe

média, desemprego, super-endividamento das famílias, das localidades e dos estados,

ampliação dos déficits federais, guerras contra o “terror”, desastre ecológico

incontrolável, apoiando golpes de Estado como no caso de Honduras e ataques

militaristas de Israel, etc.), Obama é cada vez mais (somente) o primeiro presidente

negro dos EUA. Desde 2008 o ambiente de uma grande parte dos norte-americanos e

imigrantes não cessou de se degradar, por mais que ideologia do “pior já passou”

seja praticamente permanente. Como mapeia um relatório do GEAP, o desemprego real

situa-se no mínimo entre 15% e 20% e atinge 30% a 40% nas cidades e regiões mais

afetadas pela crise. Nunca tantos americanos foram dependentes dos selos de

alimentação do governo federal que doravante contribui num nível jamais atingido

para os rendimentos das famílias estadunidenses. Paralelamente, os estados são

obrigados a multiplicar os cortes orçamentais e a suprimir serviços sociais de todo

gênero, agravando ao mesmo tempo o desemprego. E estes fenômenos desenrolam-se no

momento em que o impacto do plano de estímulo econômico da administração Obama é

suposto estar no seu máximo! Esse processo também é acompanhado por uma concentração

de renda crescente: entre 2000 e 2006, nos EUA os 10% mais ricos da população viram

sua renda crescer 32% enquanto a média dos trabalhadores caiu 1,1% em termos reais

sob um crescimento de 18% da economia. No caso do 1% mais rico, o crescimento foi de

203% e, para o 0,1% do mais alto da pirâmide de renda, houve o estrondoso aumento de

425%.
Recentemente a pequena cidade de Maywood, no sul da Califórnia, concebeu uma saída

para resolver sua crise orçamentária. A cidade está dissolvendo sua força policial e

dispensando todos os funcionários do setor público. Isso mesmo. Maywood optou pela

solução mais radical: terceirizar a contratação de todos os serviços públicos,

inclusive os mais básicos. Essa experiência não é um desvio. Ela é, na realidade, o

horizonte último para diversas cidades dos EUA e no mundo. As projeções para o

déficit combinado dos Estados apontam para US$ 112 bilhões em junho de 2011. O

déficit maior é o do Estado de Califórnia com um rombo de cerca de US$ 19 bilhões.

Uma das medidas para elevar as receitas é a legalização da maconha que será

submetida aos cidadãos nas eleições em novembro além da adoção de placas para

automóveis em tecnologia digital capaz de exibir propaganda nos veículos em

movimento (?). A solução é a mesma em todo o mundo: austeridade social e, para quem

pode, buscar por novas colonizações inimagináveis como no “capitalismo de choque”

que ocorreu pela catástrofe do Katrina ou no Haiti. Assim os Estados Unidos terão

que aumentar as taxas e diminuir os gastos, do mesmo modo que Grécia e Espanha além

de ampliar e transformar a “guerra sem fim ao terror” numa amplitude global. Na

Grécia os pacotes de austeridade pretendem reduzir o déficit fiscal em 13,6% do PIB

por meio de cortes de investimentos, redução dos benefícios aos aposentados e

mudanças nas regras trabalhistas que permitiram que as empresas demitam com mais

facilidade. Na Letônia, depois que o parlamento impôs a austeridade em 2008, foi

deposto pelos protestos populares em 2009 – tal como na Islândia. Entretanto a

“saída” foi apenas outro “regime de ocupação” a favor dos interesses da banca

estrangeira. Como disse Michel Husson, está a desdobrar-se uma Guerra Social à

escala global – não a guerra imaginada no século XIX, mas uma guerra das finanças

contra economias inteiras, o imobiliário, o governo, assim como contra o trabalho.

Isto está a acontecer do modo habitualmente lento em que ocorrem as grandes

transições históricas. Mas, tal como em conflitos militares, cada batalha parece

frenética e dispara zig-zags selvagens no mundo das que a criação de dívida tanto

nos setores governamentais como privado bolsas de ações e títulos e nos mercados de

câmbios. É um processo que faz parte da crescente simbiose entre capital e Estado

contra a ampla classe trabalhadora atual.
Lembremos que as dívidas públicas também estimulam a economia. O dispêndio

deficitário pelo governo é uma das respostas keynesianas para recessões, pondo novos

dólares em circulação para criar "procura" (a experiência dos Estados Unidos durante

a Grande Depressão indica que o dispêndio deficitário keynesiano por si próprio não

resolve problemas dos ciclos econômicos mais severos. Não foi o keynesianismo e sim

a Segunda Guerra Mundial que catapultou a economia americana para fora da Grande

Depressão!). Como calculam os companheiros da Montly Review, na década de 1970 a

dívida ativa estadunidense era cerca de 1,5 vezes a dimensão da atividades econômica

anual do país (PIB). Em 1985, era o dobro do PIB. Em 2005, a dívida total dos EUA

era quase 3,5 vezes o PIB do país. Entretanto à medida que a dívida total cresce

cada vez mais, ela parece estar a ter menos efeitos estimulantes sobre a economia.

Embora não haja relacionamento exato entre criação de dívida e crescimento

econômico, na década de 1970 o aumento no PIB era cerca de 60 centavos por cada

dólar acrescido de endividamento. No princípio de 2000 esta proporção havia

diminuído e aproximava-se dos 20 centavos de crescimento de PIB por cada dólar

adicional de endividamento. Juntamente com a explosão de dívida tem-se verificado o

crescimento excepcional das finanças e da especulação financeira na economia

americana — estimulada significativamente pelos níveis de endividamento cada vez

mais elevados. As finanças (bancos, firmas de investimento, companhias de seguros e

consórcios imobiliários) desenvolvem um número sempre crescente de novas maneiras de

tentar fazer dinheiro com dinheiro — D–D' na formulação de Marx. Esses mecanismos se

estendem até o absurdo. Por exemplo: em 1975, 19 milhões de ações foram comerciadas

diariamente na Bolsa de Valores de Nova York. Em 1985 o volume havia alcançado 109

milhões e em 2006, foram 1600 milhões de ações com um valor de mais de US$ 60 mil

milhões. Ainda maior é a comercialização diárias nos mercados mundiais de divisas, a

qual passou de US$ 18 mil milhões por dia em 1977 para a atual média de US$ 1,8

milhão de milhões por dia. Isto significa que a cada vinte e quatro horas do dia o

volume em dólares das divisas comerciadas equivale a todo o PIB mundial anual!
Esse panorama, é claro, tem profundas ligações com a China – o horizonte do

capitalismo hoje. No ano de 2001 não temos apenas os ataques de 11 de setembro e a

declaração de “guerra ao terror sem fim” por George W. Bush. 2001 também é o ano de

entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio), que representa o ponto

mais avançado das medidas para fazer do planeta um espaço único de valorização de

capital. A extensão da globalização a Ásia criam efeitos paradoxais: com a

integração da China – e em menor grau da Índia – à economia mundial, a situação dos

trabalhadores tende a piorar. Por quê? A inserção da China – e seus baixos salários

- causa a competição direta entre os trabalhadores atuando como um excesso

estrutural de mão-de-obra incidindo sobre os trabalhadores os ajustes necessários as

novas condições de competição internacional.

A importância do comércio exterior para o crescimento chinês coloca como desafio a
expansão de mercados que, com a crise, tendem a diminuir sua demanda. Os EUA são

hoje o maior mercado da China. Ou a China compensará a desaceleração da demanda

estadunidense voltando-se para outros mercados ou pode chegar um momento, como na

Coréia em 1997, onde os efeitos da superacumulação são imediatamente transformados

em crise aberta. Sabemos a estabilidade macroeconômica mundial encontra-se na China.

Como notou Aglietta, o governo chinês decidiu até esfriar o motor do investimento em

setores como o imobiliário, siderúrgico e automobilístico. Apesar destas medidas

existe uma grande dificuldade em diminuir esses investimentos, principalmente

imobiliário, na construção de infra-estruturas rodoviárias e na construção de outras

fábricas. Essa situação se deve, em parte, as províncias e aos industriais locais

que buscam afirmar sua autonomia diante do poder central.

Os rumores sobre a desaceleração da economia chinesa junto com a piora da

“confiança” do consumidor nos EUA e os tropeços do euro estão causando espasmos nas

bolsas de todo o mundo. O temor de um súbito resfriamento da economia chinesa e seus

desdobramentos sobre a importação de commodities está derrubando as cotações de

produtos como petróleo e metais, com reflexo direto nas ações de companhias

domésticas ligadas a esses setores. E daí que hoje estamos vendo um crescente número

de problemas que não tem solução senão, novamente, a economia da guerra, o estado de

emergência fiscal, a ofensiva do capital financeiro contra os trabalhadores e, não

menos importante, o renascimento da luta de classes sob novas bases sociais,

organizacionais e políticas com um horizonte amplo e abrangente para além do

capital.

Fernando Marcelino

[1] O estado de exceção permanente encontra-se, entre outros, no mundo do trabalho

com as práticas just-in-time sob a forma de autocontrole do trabalhador onde, se

desdobrando em múltiplas dimensões, trazem a novidade histórica do período

toyotista: as empresas envolvem os trabalhadores no just-in-time e, ao mesmo tempo,

os trabalhadores são envolvidos pela empresa com as práticas just-in-time. Baseada

numa “aposta da ética individual” se produz uma moral baseada exclusivamente na

realização do indivíduo em detrimento dos interesses coletivos, buscando um

engajamento dos recursos subjetivos do trabalhador a recurso da produtividade da

empresa baseada num novo tipo de vínculo social. O outro lado do just-in-time é a

redução de estoques e procuras organizando as funções segundo a lógica ditada pela

demanda do mercado.



[2] Essa etapa do desenvolvimento do capital, muito bem pensada por Marx, apresenta

uma nova dimensão política da luta entre o campo industrial produtivo e o campo

financeiro. A novidade histórica da financeirização global é que, no mercado

financeiro, não existe luta de classes já que “confrontam-se apenas emprestadores e

prestadores. Nesse campo, a mercadoria tem a forma invariável de dinheiro,

desvanecendo todas as figuras particulares do capital de produção e circulação em

que se aplica – “passa o capital a existir na figura que não se diferencia, do valor

autônomo, sempre igual a si mesmo – o dinheiro. Anula-se a concorrência entre

diversos ramos, procurando todos conjuntamente tomar dinheiro emprestado”. Para o

capitalista financeiro, o autêntico produto do capital não é a mais-valia, e sim o

lucro menos o juro, a parte que resta do lucro, depois de pagar o juro. A expansão

desse processo global D – D’ iniciou uma transformação na funcionalidade do campo

produtivo que envolve, em última instância, o desaparecimento do capitalista no

processo de produção, agora como figura supérflua e existindo apenas como

funcionário. Essa crescente dimensão do campo financeiro redimensiona o campo

produtivo com o progressivo “fim da representação do capital perante o caráter

antagônico do trabalho”. Como não existe luta de classes entre o capitalista

industrial e financeiro, por mais que tenham estratégias até contrárias formando uma

unidade dialética, isso cria uma confusão política radical na fábrica contemporânea

que cada vez mais necessita da intervenção do Estado para “prosperar”. Fazendo um

adendo, diria que estamos entrando silenciosamente numa nova etapa do capitalismo

mundial. O Estado forte e autoritário está novamente emergindo numa espécie de

“chineização global”. Não como as experiências fascistas do século XX, mas podendo

ser inserido na própria democracia liberal. A democracia poderá continuar

formalmente, mas as decisões chave para a sustentação da economia mundial terão,

cada vez mais, um caráter autoritário. Nos Estados Unidos e em outros países do

mundo, o que aconteceu com a democracia liberal quando foi necessária a “ajuda”

astronômica do Estado diante do derretimento do sistema financeiro no dia 15 de

setembro de 2008? Não foi exatamente o mesmo que George W. Bush fez no 11 de

setembro de 2001? Em poucas semanas, o impossível foi feito: um dinheiro na ordem de

bilhões e bilhões foi aplicado para o salvamento da economia numa espécie de

suspensão da ordem democrática. Um dinheiro irrepresentável foi facilmente aceito

para “reparar a economia” pela suspensão da ordem. Portanto, o tempo democrático é

longo demais para as prioridades da crise atual.



[3] Na leitura de Kojin Karatani Marx entendia a “ditadura da burguesia” da seguinte

forma: é o sufrágio universal, e não uma violência direta que programam regras

sociais, que afirma a divisão estrutural da sociedade entre os detentores dos meios

de produção e os expropriados de seus meios de trabalho. Com o sistema

representativo pessoas de todas as classes participam das eleições. Além disso,

nesse sistema os indivíduos são, pela primeira vez, separados em princípio de todas

relações de classe e relações de produção. Dessa forma, esse mecanismo apaga as

relações de classe ou de dominação pela redução temporária das pessoas em

“indivíduos livres e iguais”. É esse mecanismo que funciona como ditadura da

burguesia onde os indivíduos são livres somente no momento em que as relações

hierárquicas são suspensas.



sexta-feira, 23 de julho de 2010

A farsa do debate eleitoral e a ausência de perspectivas

O debate político está enterrado e tornou-se eleitoreiro na democracia liberal burguesa no mundo e atualmente no Brasil. Isto pode ser comprovado através do comportamento dos candidatos que estão à frente das pesquisas eleitorais para a presidência da república. Em parte, a estratégia defensiva de como os temas são tratados me parece racional (que não significa o melhor dos mundos em termos de projeto autêntico, mas segue as linhas mestras de enxergar a política como ela é - lição de Maquiavel),  já que falar sobre assuntos como o aborto, os sem-terra e o controle ou a responsabilização dos meios de comunicação sobre as questões que envolvem a sociedade tornou-se chavão em termos de argumentos e ao mesmo tempo quase que impossível de ser tratado com a profunidade que merecem. Isso mostra que a igreja, o latifúndio  e a mídia são poderosíssimos em nossa Mátria (a mãe que acolhe todos com a distinção devida).
O candidato Serra faz isso com maior desenvoltura no sentido da facilidade com que se posiciona a favor das elites e a candidata Dilma trata desses temas sempre de forma muito treinada pela assessoria petista e outros atrás dos bastidores. O candidato tucademo comprova que seu partido nunca teve qualquer envolvimento com movimentos sociais no Brasil, apesar de sua sigla sugerir Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB. Isso não aconteceria nem nos Estados Unidos, já que para um partido ser considerado social-democrata é no mínimo necesário que ele tenha afinidade ou ligação com bases sindicais de trabalhadores e outras agremiações ligadas as lutas sociais e democráticas.
A imprensa diz repetidamente que os programas dos dois partidos são muito parecidos para propositalmente confundir os eleitores, isto é, PT e PSDB, mas as ações negam tal propriedade, pelo menos quanto ao tratamento dado a determinados temas, principalmente a partir da política externa de Lula e outras negociações importantes com os próprios sem-terra e sindicatos, além de políticas públicas de inclusão e o tratamento dado ao funcionalismo público federal.
Enquanto isso o projeto de Serra é avesso a grande parte das questões voltadas a um melhor tratamento dado aos sem-terra e a universalização de políticas públicas de inclusão alternativas e outros projetos relacionados ao controle estratégico do Estado. Então, na prática os projetos são bem diferentes. Ao mesmo tempo, o pragmatismo de determinadas políticas econômicas, que é nada menos que a principal das políticas é tratada com o consenso esperado pela mídia e pelos banqueiros a partir dos dois candidatos principais à presidência. Nada fora do script para não causar nenhum tumulto na entidade chamada "mercado" antes das eleições como forma de barganha maior à sabatina eleitoral. Como bem lembrado pelo meu amigo Walter, as discussões tanto nos Estados Unidos quanto na Europa se referem a estabilidade econômica, mesmo que essas sejam remendos superficiais e que gerem crises cíclicas, corroborando com os próprios alicerces inerentes de um sistema na sua raiz desigual, isto é, o capitalismo.
A discussão está colocada, mas para infelizmente poucos, mesmo no universo da elite acadêmica e midiática, e que ainda tem a pretensão de enaltecer a expressão "voto consciente" como sendo aquela que irá nos salvar de todos ou quase todos os males da institucionalização da política parlamentar. Quanto a esse aspecto apoio o "voto raciona" da pobreza, que pelo menos enxerga o voto como a expressão de uma escolha baseada naquilo que vê e sente, isto é, políticas públicas concretas, ao contrário da nossa pequena burguesia ou classe média que escolhe aquilo que é incompatível com aquilo que tem e poderá ter, sem contar a ausência de uma perspectiva em termos de construção alternativa de nação, já que está mais preocupada com o seu consumo fetichizado por natureza de classe.

Sem muita hipocrisia me direciono no momento para o pragmatismo Lula-Dilma, já que o projeto político-partidário continua em aberto com algumas nuances dos partidos menores que se encontram à margem esquerda na sua essência, mas ainda por muito a fazer em termos de construção de uma alternativa que coloque o debate essencialmente político na pauta e que procuram, pelo menos, dar início a um movimento que venha a romper com o processo de desideologização que o sistema político burguês delegativo promove aliado a burocracia de Estado e ao capitalismo. Não se trata de um projeto elitista de argonautas e aos critérios delegativos de um Hércules político, ao contrário, ele deve ser construído socialmente. A questão está em como fazer isso, já que precisamos de indivíduos capazes e que ao mesmo tempo compreendam a real tarefa de inclusão política, sem iludir-se que a formação de um "voto consciente" iluminado e o discernimento e a participação política da sociedade ocorram por vontade própria e pela educacação nas escolas. Isso não irá acontecer, ao mesmo tempo que esperar que o coletivismo político venha a surgir de pessoas sem o mínimo preparo educacional, não aquele da escola evidentemente.  A luta política é extremamente desigual, por isso ela deverá formar as crianças e jovens a partir de uma educação que seja adequada aos moldes do conhecimento associado a luta política libertária. Ex: os sem-terra. Mas a questão continua em aberto: como construir uma educação alternativa em um mundo cada vez mais burocrático-institucional, onde o capitalismo preencheu quase todas as lacunas e opções de acesso as coisas que envolvem o mundo moderno. A cultura, o entretenimento, o lazer, o esporte e as comunicações estão nas mãos dos capitalistas, em grupos econõmicos-financeiros cada vez mais concentrados pelo poder material associativista. Há única alternativa que eu vejo está na organização para a revolução, e isto não se fará com diálogos, mas com ações cada vez mais pontuais em termos de enfrentamento físico-material; mas mesmo para a utilização da força é preciso o devido preparo,  que o grau de atomização e pasteurização da sociedade não se permitirá avançar nesses termos, porque estará cada vez mais arriscado fazê-lo. Deixarei vocês com as minhas inquietações e contradições abertas a um próximo diálogo impertinente.

Marcelo Gonçalves Marcelino

Para quem pensa que juros é só questão que deve ser abordada por economistas vale a minha insistência sobre o tema

Agência Carta Maior - 20/07/2010

Juros: crônica de uma elevação anunciada

O presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, anunciará que, a partir do dia 22 de julho de 2010, a taxa de juros com a qual o governo federal remunerará os agentes do sistema financeiro pela compra de seus títulos públicos será de 11% ao ano.

Paulo Kliass

Eu juro para vocês que gostaria de mudar um pouco de assunto, sair de temas um tanto quanto recorrentes como a questão financeira e a taxa de juros. Mas, infelizmente, a agenda da política econômica do governo me impede de discorrer sobre assuntos, digamos, mais amenos.

Enquanto escrevo este artigo, a grande imprensa trata os futuros resultados da próxima reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central (BC) como favas contadas. Hoje, dia 19, segunda-feira, de acordo com sua agenda na página na instituição, o Presidente do BC tem uma “reunião de mercado no Banco Central em Brasília”, seja lá o que isso signifique. Em seguida, nos dias 20 e 21, participa e preside a reunião do COPOM. Tal liturgia ocorre, quase que de maneira religiosa, a cada 45 dias, quando os resultados mais aguardados pelo tal do “mercado” e pelos demais membros “normais” da sociedade brasileira são a definição da taxa de juros SELIC e o texto na íntegra da ata da reunião do nobre colegiado.

Essa mesma ladainha já nos incomoda há muitos e muitos anos. E, de tanto ela ser repetida, associada à falta de coragem política dos governantes em contestar essa mentira travestida de “onipotência científica”, o Brasil continua sua trajetória desgovernada rumo aos efeitos maléficos do monetarismo ortodoxo, completamente orientado para satisfazer, de forma prioritária, as vontades do sistema financeiro e seus beneficiados em nossa sociedade.

As manchetes dos cadernos de economia dos grandes meios de comunicação anunciam, para quem quiser ler e ouvir, que o COPOM deverá elevar ainda outra vez a taxa básica de juros do governo. Não satisfeito com os atuais 10,25% ao ano, o campeão mundial da taxa de juros pretende aumentar ainda a sua distância em relação ao pelotão dos retardatários, para manter com segurança o “maillot jaune”, a tal da camiseta amarela conferida ao ciclista primeiro colocado nas etapas do “Tour de France”. De acordo com as fontes consultadas pela imprensa especializada, não deverá haver mistério quanto à proposta a ser aprovada pela reunião pelos mesmos membros da diretoria do BC, que se traveste com as pompas de COPOM a cada 6 semanas e mais três dias. O Presidente Henrique Meirelles anunciará que, a partir do dia 22 de julho de 2010, a taxa de juros com a qual o governo federal remunerará os agentes do sistema financeiro pela compra de seus títulos públicos será de 11% ao ano. Que beleza....

Agora vamos buscar as verdades nos não ditos, nas entrelinhas, na realidade dos fatos e nas conseqüências econômicas de tal violência. O estoque de nossa dívida pública se aproxima do valor de R$ 1,6 trilhão. Uma operação singela de cálculo aritmético nos oferece o quadro de aumento das despesas do Tesouro e do Orçamento em razão de tal elevação. Esse simples aumento de 0,75% na taxa SELIC elevará tais gastos em R$ 12 bilhões ao longo dos próximos 12 meses. O que significa uma despesa extraordinária que, por si só, quase se aproxima dos valores totais previstos no Orçamento de 2010 para o conjunto de um programa social como o Bolsa Família.

Uma outra maneira de avaliar o impacto dessa política monetária destruidora e irresponsável é o resultado estimado de despesas do orçamento federal em 12 meses. Os gastos do governo federal provocados por mesmos 11% da taxa SELIC em relação à sua divida de R$ 1,6 trilhão serão de R$ 180 bilhões ao longo de 12 meses. E depois o governo manda dizer, a cada demanda que aparece da sociedade e dos movimentos sociais, que a “política séria e de extrema austeridade na conduta fiscal” não lhe permite fazer gastos “irresponsáveis” com saúde, educação, previdência social e similares. Isso porque o seu compromisso é o de alcançar a tão glorificada meta de superávit primário. Uma loucura!

Aguardemos ansiosamente o pronunciamento dos candidatos e das candidatas ao pleito de outubro a respeito desse pequeno detalhe da vida nacional. Qual a avaliação que fazem da condução de tais propostas ao longo dessa década e meia? O que apresentam como alternativa para reduzir o custo social, econômico e política dessa aventura inexplicável, que transfere recursos do conjunto da sociedade para beneficiar setores afortunados de sua elite?

Não há espaço aqui para debater em detalhes a respeito das bases teóricas que sustentam tal visão do fenômeno econômico e das soluções para enfrentar as dificuldades que surgem a cada momento. De uma forma resumida, pode-se focar na questão do chamado “aquecimento excessivo” da demanda e dos riscos do retorno da inflação elevada, característica dos períodos anteriores ao Plano Real. Os modelos existentes por trás da política econômica implementada desde 1994 pressupõem a existência de uma meta de inflação para um período futuro (em geral, de um ano) e que, para atingi-la, o principal instrumento de que o governo federal dispõe é a fixação da taxa oficial de juros. A tal da política monetária. O pressuposto é de que taxas de juros mais elevadas atuam como inibidoras da demanda do conjunto da sociedade (menos investimentos, menos gastos públicos, menos consumo das famílias) e assim contribuem para evitar o crescimento dos preços. Isto porque estes últimos estariam em alta por um aumento desproporcional dessa mesma demanda, dita agregada, do conjunto da sociedade e da economia. Apenas quero frisar que esse enfoque é por demais restritivo e polêmico.

No entanto, a questão se coloca é mais ampla, e supera em muito a simples utilização da meta de inflação e da fixação da taxa de juros. Em primeiro lugar, porque, ao contrário do que pretende nos enganar a grande imprensa e nos iludir os responsáveis pela condução da política econômica, não existe nenhum tipo de “neutralidade científica” na tomada desse tipo de decisão. Todas essas medidas são absolutamente marcadas pelo elemento da “Política” com pê maiúsculo mesmo. O argumento muitas vezes utilizado de que isso é “coisa complicada, que só os economistas entendem” não resiste a um debate entre as diversas correntes do pensamento econômico, que oferecem explicações e soluções distintas para cada fenômeno abordado.

A grande imprensa retrata as decisões de anúncio da nova SELIC como tão somente o surgimento de um elemento a mais a levar em conta na tomada de decisões dos operadores do mercado das finanças e da economia. Um item a mais, que se soma a outros tantos como taxa de câmbio, taxa de inflação, nível de reservas internacionais, crescimento do PIB, etc. O fato, porém, é que este simples anúncio transcende em muito o que dele se esperava nos modelos econômicos teóricos. A divulgação da SELIC não é apenas um ato de tornar explícita a intenção do governo de sinalizar para o mercado o quanto ele, governo, acha que deveria ser um nível adequado da taxa de juros para reduzir a eventual demanda aquecida. O governo participa efetivamente da implementação desse novo patamar de juros e isso provoca, entre outros, o custo orçamentário acima mencionado. É, repitamos aqui, uma decisão absolutamente carregada de política, como se o governo estivesse a nos dizer: nossa prioridade é gastar com o lado financeiro, pois para esse tipo de despesa com juros nunca haverá limite. Já para as outras despesas, com o chamado lado real (não financeiro) da economia, a nossa disposição não é exatamente a mesma, afinal há sérias restrições na condução da política fiscal e não podemos ser irresponsáveis na execução do gasto público, pois os recursos orçamentários são limitados e tome blá-blá-blá-blá...

O ritual das preliminares da reunião do COPOM envolve a divulgação do conhecido Boletim Focus, em que aquela entidade mágica e inatingível chamada “mercado” apresenta suas expectativas, a partir de uma estimulação do próprio BC. Trata-se da divulgação dos resultados proporcionados pelos inúmeros modelos econômicos e econométricos que circulam pelas empresas de consultoria e pelas áreas econômico-financeiras dos bancos e das empresas do setor. Perspectivas quanto à inflação futura, projeções de crescimento do PIB, possibilidades de desempenho setorial e das contas externas, perspectivas do desempenho internacional. Em suma, o mesmo tipo de modelo sério e infalível que oferecia toda a garantia à economia norte-americana e européia até a ante-véspera da crise que se iniciou em 2008. Todos (os que foram convidados, obviamente...) têm direito a dar seus palpites e o COPOM costuma fazer uma “média” das opiniões oferecidas para levar em conta em suas decisões. Isso é que a grande imprensa costuma chamar de “na opinião do mercado”...

Mas o ponto a destacar nesse final é que há outras medidas a serem tomadas sem que o sacrifício imposto ao conjunto da sociedade seja de tal natureza. Durante a época áurea do neoliberalismo, havia uma sigla para os modelos que defendiam tal terapia ortodoxa. Eram conhecidos nos meios econômicos e financeiros como TINA, do inglês “there is no alternative”. Ou seja, o argumento era de que não haveria alternativa ao receituário neoliberal e muito menos aos sofrimentos impostos aos países que adotassem suas políticas. Como se os proponentes dissessem: “sim, nós sabemos e lamentamos que o processo seja doloroso; mas, infelizmente, não há alternativas”.

No entanto, a crise recente mostrou que, sim, existem alternativas. E várias. Nesse caso específico, um dos pontos chaves é mexer também na política cambial e na sistemática da conta de capitais. Teria quase o mesmo efeito dessa política de taxas de juros elevadíssima uma decisão que levasse em conta a desvalorização da taxa de câmbio do nosso real em relação ao dólar norte-americano e ao euro, por exemplo. É sabido e reconhecido que o nosso câmbio está sobrevalorizado, com todos os impactos negativos de uma verdadeira ilha de fantasia tupiniquim. Exportações desestimuladas, importações altamente favoráveis, ameaças de desindustrialização de setores importantes de nossa economia, riscos em nossas contas externas. E dá-lhe oferecer atrativos ao capital especulativo internacional que venha para cá, aportar em nossas praças, para ajudar a fechar o balanço a cada final de dia, de semana, de mês, de ano. Qual o principal chamariz? A taxa de juros mais alta do mundo! E tudo isso como se essa decisão, apresentada como neutra e isenta, não trouxesse custos ao nosso orçamento público e nem ao conjunto da economia.

Combinada ao realismo da necessária desvalorização cambial, faz-se necessário também implementar um maior controle sobre a absoluta liberdade de circulação de capitais em nosso território. Cabe uma política de taxação sobre o recurso especulativo que para cá venha em busca apenas da remuneração apetitosa do setor financeiro no curto prazo. A exemplo do que faz a maior parte dos países, estimular os valores que venham para uma permanência de longo prazo, no setor real e produtivo. Mas, assim como os outros fazem, deveríamos reduzir a nossa característica de cassino financeiro, impondo regras relativas a prazos de permanência e impostos a serem recolhidos para os valores orientados exclusivamente pelo faro do curto prazo.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

Um debate fundamental acerca da institucionalização da política - uma discussão a partir da visão do filósofo húngaro István Mészáros

A atualidade histórica da ofensiva socialista: pela política extraparlamentar no século XXI

Fernando Marcelino

A urgência das questões levantadas por István Mészáros em A atualidade histórica da ofensiva socialista: uma alternativa radical ao sistema parlamentar, lançado pela Boitempo (2010) na coleção Mundo do Trabalho, não me permite fazer grandes rodeios nesta pequena resenha . Para Mészáros a verdadeira pergunta hoje é: como estabelecer firmemente uma direção global ao movimento socialista (diante do desdobramento histórico da crise estrutural do capital que afeta a totalidade dos trabalhadores e tem uma dimensão universal) conseguindo, em termos organizacionais e estratégicos, efetuar simultaneamente a dimensão negativa da luta de classes contra o capital e positiva para além do capital?

Mészáros aponta que a atual “crise do marxismo” se deve principalmente ao fato de que muitos de seus representantes continuam a adotar uma posição defensiva, numa época que deveríamos nos engajar numa ofensiva socialista em sintonia com as condições objetivas contemporâneas. Paradoxalmente, nos últimos 40 anos, juntamente com a manifestação da crise estrutural do capital, testemunhamos a disposição de muitos marxistas em buscar novas alianças defensivas e se envolverem com todos os tipos de revisões e compromissos ainda que não tenham nada para mostrar como resultado de tais estratégias fundamentalmente desorientadas. Desiste-se do horizonte socialista em nome de um “capitalismo democrático” sem seus excessos mais perversos, como se não fossem constitutivos desta mesma ordem social. Para o húngaro, essa desorientação não é simplesmente ideológica ou pode ser reduzida a uma questão de “traição” de determinadas personalidades. Na realidade, se quisermos encontrar uma explicação mais plausível do que essas idéias circulares de falha na “personalidade” devemos enfrentar os problemas estruturais de nossa “política democrática”. Emergem duas dificuldades desse conflito: por um lado a autorreferencialidade do discurso político que atua sob o horizonte estritamente institucionalizado das decisões políticas ignorando os interesses materiais do capital no resultado dos conflitos e antagonismos. Por outro lado encontramos a dificuldade relacionada com a forma com que o sistema parlamentar é tratado no discurso político tradicional, geralmente como “centro de referência necessário de toda mudança legítima. A crítica só é admissível em relação a alguns detalhes menores, visando corretivos potenciais apenas para remediar até certo ponto a estrutura da política parlamentar estabelecida” (2010, p.15).

O Parlamento como tal é tratado como tabu, excluindo-se a legitimidade de se defender a instituição de uma alternativa radical viável ao aprisionamento político-parlamentar da classe trabalhadora. Trata-se de assunto sério, pois sem o estabelecimento de uma alternativa radical ao sistema parlamentar não pode haver esperança de desembaraçar o movimento socialista de sua atual situação, à mercê das personificações do capital que existem em suas próprias fileiras (idem, p. 15).

O pensamento de Mészáros nos leva a imediata necessidade de se criar uma “alternativa estrategicamente sustentável ao sistema parlamentar” para “libertar o movimento socialista da camisa de força do sistema parlamentar burguês” . Portanto, para as perspectivas da emancipação do trabalho, nunca foi de tão grande importância a luta política e a crítica radical do Estado, inclusive suas “instituições democráticas” entre eles, o Parlamento. Até mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital – o Estado liberal-democrático com sua representação parlamentar e suas garantias democráticas formais e institucionalizadas de “justiça e imparcialidade” - fracassou em todas as promessas que a autolegitimavam. Além disso, como o Estado é a estrutura totalizadora de comando político do capital, a exigência para proteger a produtividade do sistema se assevera diante da atual crise estrutural. Sua crescente intervenção autoritária está, portanto, em sintonia com a dinâmica de reprodução socioeconômica voltada para a incontrolável expansão e acumulação de capital.

Entretanto o fardo que se coloca hoje para o movimento socialista é a reestruturação da própria política complementando a ação institucionalizada pela ampliação radical de formas extraparlamentares para combater o caráter extraparlamentar e destrutivo do capital. Mészáros aponta duas razões para que esse processo se desenrole: por um lado o aprofundamento da crise estrutural do capital que trás crescentes dificuldades do trabalho obter ganhos efetivos – ao molde do passado - através das instituições defensivas existentes. Isso corresponde ao desconfortável fato negativo de que algumas formas de ação anteriores (“as políticas de consenso”, “pleno emprego, “a expansão do Estado de bem-estar-social”, “keynesianismo para todos” etc.) estão objetivamente bloqueadas, impondo reajustes profundos na sociedade como um todo. Estar partindo dessa “negatividade brutal” inicial não significa que os reajustamentos serão positivos, mobilizando as forças socialistas num esforço consciente para se apresentarem como portadoras de uma ordem social alternativa capaz de superar a sociedade capitalista em crise. Como essas mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de prontamente aceitarmos o “salto para o desconhecido”, é mais provável que se prefira seguir a “linha de menor resistência” ainda por um tempo considerável, mesmo que isso signifique derrotas significativas para as forças socialistas.

Por outro lado temos a pressão objetiva pela reestruturação radical das instituições de luta socialista, para que sejam capazes de ir ao encontro do novo desafio histórico, numa base organizacional que se evidencia adequada a necessidade crescente de uma estratégia ofensiva para além do capital. Está em jogo, portanto, a construção de uma estrutura organizativa capaz de não só negar a ordem dominante, mas também, simultaneamente, de exercer funções vitais positivas de controle para romper o círculo vicioso de controle social do capital e sua própria dependência negativa e defensiva em relação a ele.

Por isso a importância do “estabelecimento de uma alternativa radical ao sistema parlamentar” já que não pode haver estratégia viável de transformação socialista “sem prosseguir com firmeza na realização da unificação das dimensões política e material de reprodução também no domínio organizacional [...]. Tal potencial é viável pela tentativa consciente de superar a fatídica separação entre o braço industrial do movimento operário e o braço político (os partidos no Parlamento), separados sob o invólucro capitalista de ambos por meio da aceitação da dominação parlamentar pela maioria do movimento operário ao longo dos últimos 130 anos” (idem, p. 34). Essa domesticação das forças do trabalho é diametralmente oposta “a alternativa radical de fortalecimento da classe trabalhadora para se organizar e se afirmar fora do Parlamento – por oposição à estratégia derrotista seguida ao longo de muitas décadas até a perda completa de direitos da classe trabalhadora em nome do ‘ganhar força’ – [que] não pode ser abandonada tão facilmente, como se uma alternativa de fato radical fosse a priori uma impossibilidade” (idem, p. 35). Mészáros afirma que a ação extraparlamentar é absolutamente vital para o futuro de um movimento socialista rearticulado radicalmente. Esse é o desafio que poderia afetar o poder do capital ao assumir as funções de produção decisivas do sistema ao mesmo tempo em que adquire o controle sobre todas as esferas correspondes da tomada de decisão política. O não-condicionamento pela “prisão circular da ação política institucionalmente legitimada pela legislação parlamentar” da ação extraparlamentar de um movimento revolucionário de massas, ativo em todas as formas de luta política e social, ainda pode ter como horizonte “utilizar plenamente as oportunidades parlamentares quando disponíveis, ainda que limitadas nas atuais circunstâncias, e, acima de tudo, sem medo de afirmar as demandas necessárias da ação extraparlamentar desafiadora” (idem, p. 43). O papel de um movimento revolucionário extraparlamentar é duplo. Cabe a ele “formular e defender organizacionalmente os interesses estratégicos do trabalho como alternativa sóciometabólica historicamente viável” ao enfrentar conscientemente e negar vigorosamente, em termos práticos, as determinações estruturais da reprodução material do capital que se manifesta na subordinação do trabalho ao processo socioeconômico ao mesmo tempo em que o poder político (que hoje prevalece no Parlamento) deve ser contestado “por meio da pressão que as formas de ação extraparlamentar podem exercer sobre o Legislativo e o Executivo” (idem, p. 44). Por outro lado as forças parlamentares da política não podem se articular de forma auto-suficiente e autônoma já que não são organizações autoconscientes. O maior desafio continua sendo a formação de militantes políticos nas organizações extraparlamentares em coexistência com partidos de experiência histórico-concreta na luta de massas e com o horizonte definido para uma revolução socialista.

Muitas vezes essa reciprocidade é rompida quando as forças políticas institucionais procuram institucionalizar as forças extraparlamentares – e assim domesticá-las - ou a procura imediata dos recursos econômicos do Estado acaba por tornar o movimento extraparlamentar uma grande massa de manobra para interesses partidários escusos . A questão é que hoje a aceitação das amarras parlamentares como a única estrutura legítima da ação política, a aceitação das regras internas do jogo parlamentar – mesmo que praticada com propósito radical – só pode produzir o auto-encarceramento parlamentar da esquerda. Isso significa deixar de lado a política? Ao contrário, por mais desencorajador que sejam suas formas institucionais, não existe opção fora da política. O desafio para o movimento socialista é exatamente renovar práticas revolucionárias extraparlamentares para bater de frente com as forças destrutivas extraparlamentares do capital sob a crise estrutural em desdobramento. Como escreve no final da Introdução:

É claro que um movimento organizado revolucionário consciente de trabalhadores não poderá ser contido dentro da estrutura política restritiva do Parlamento dominado pelo poder extraparlamentar do capital. Ele também não terá sucesso como organização sectária auto-orientada. Poderá se definir com sucesso por meio de dois princípios orientadores vitais. Primeiro, a elaboração de seu próprio programa extraparlamentar orientado para os objetivos da alternativa hegemônica abrangente para assegurar uma transformação sistêmica fundamental. E, segundo, igualmente importante em termos de organização estratégica, o envolvimento ativo na constituição do necessário movimento extraparlamentar de massas, como portador da alternativa revolucionária capaz de mudar, qualitativamente, também o processo legislativo. Isso representaria um grande passo na direção do fenecimento do Estado. Apenas por meio desses desenvolvimentos organizacionais, com o envolvimento direto das grandes massas será possível imaginar a realização da tarefa histórica de instituição da alternativa hegemônica dos trabalhadores no interesse da emancipação socialista abrangente (idem, p. 49, 50)
A pergunta que fica é: estamos preparados para superar o “fim da história” da democracia-liberal como horizonte último articulando assim uma alternativa histórica tanto ao capital quanto ao sistema parlamentar estabelecido? Emerge a necessidade de instituir algumas mudanças fundamentais na organização e orientação do movimento socialista para uma intervenção radical que não seja restrita à esfera política e que conteste também as estruturas materiais da própria relação-capital. Não há saída para o movimento socialista senão criar as condições para tal empreitada revolucionária em escala internacional de massas. Não é a toa que “o percurso à frente é provavelmente muito árduo e, sem dúvida, não tem atalhos nem pode ser evitado” (idem, p. 197).

Sem dúvida A atualidade histórica da ofensiva socialista é uma poderosa arma contra a resignação e as estratégias estreitas do movimento socialista que, cada vez mais, mostram-se estéreis ao se limitar a ação parlamentar e não correspondem ao fardo histórico que temos pela frente no processo de transição ao socialismo. Numa época em que parte considerável das instituições de luta faz parte do problema e não da solução, Mészáros proporciona uma profunda oxigenação na esquerda ao esgarçar os limites do possível e do impossível afirmando a validade e universalidade da solução socialista como a única alternativa possível à realidade antagônica e destrutiva do capital.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

A Copa do Mundo desvia a atenção de problemas mais cruciais

Agência Carta Maior - 19/07/2010

DEBATE ABERTO

Mídia e Copa: o mundo reduzido ao futebol

Um amigo chama minha atenção para a cobertura “enviesada” que a grande mídia está fazendo, nestes dias de Copa do Mundo, do gigantesco vazamento de óleo provocado pela empresa “inglesa” Bristish Petroleum, no golfo do México.

Venício Lima

Não existe melhor exemplo para expressar aquilo que o professor canadense Marshall McLuhan (1911-1980) denominou “aldeia global”, há mais de quatro décadas. A tecnologia tornou possível que as imagens da Copa do Mundo de Futebol estejam disponíveis em todo o planeta, ao vivo, simultaneamente.
Haverá outro evento midiático capaz de interessar e mobilizar tanta gente? No Brasil, quando está envolvida a “seleção canarinho”, já dizia com propriedade Nelson Rodrigues: é a pátria que está de chuteiras.

São trinta dias corridos, cerimônias de abertura e encerramento, 64 jogos ao vivo (124 horas), treinos, entrevistas, reportagens especiais, etc. etc. Duas redes abertas – a Globo e a Band –, os canais de esporte da TV paga e as demais emissoras (que não estão transmitindo os jogos), com programação especial. Só a Globo tem 300 pessoas na Copa: 220 profissionais que foram do Brasil e mais 80 terceirizados contratados na África do Sul. E, por óbvio, não é só a televisão, nem o rádio. Jornais e revistas também “entram no clima” da Copa.

Ademais, é neste dias que a predominância da lógica comercial da grande mídia se revela em sua dimensão plena. Além da “Jabulani” que rola, há muito dinheiro em jogo. E claro, o mundo da grande mídia parece reduzido ao futebol.

A British Petroleum

Um amigo chama minha atenção para a cobertura “enviesada” que a grande mídia está fazendo, nestes dias de Copa do Mundo, do gigantesco vazamento de óleo provocado pela empresa “inglesa” Bristish Petroleum, no golfo do México. Segundo ele, este pode ter sido o maior desastre ecológico do mundo. Todo o golfo poderá ter sua fauna e flora marinha comprometida de forma irreversível. E, no entanto, a grande mídia, não dá ao desastre a dimensão que ele deveria ter.

Primeiro, na maioria das vezes, a grande mídia se refere à British Petroleum apenas como “BP”. Estaria em andamento uma estratégia de RP para, escamotear de qual país é a empresa responsável pelo desastre ecológico?

Segundo, onde está o Greenpeace? Onde estão O Globo, a Rede Globo, a Folha, o Estadão, a CBN e seus “analistas políticos”, os "econômicos", os "apresentadores", as "ONGs", ambientalistas, verdes, igrejas, atores hollywoodianos? Onde estão todos que se manifestaram ruidosamente por ocasião do leilão da hidrelétrica de Belo Monte?

Terceiro, a grande mídia faz o jogo da Casa Branca, anunciando que o presidente Barack Obama “quer saber em quem ele tem que dar um chute no traseiro”, como se um acidente que é devastador para a humanidade pudesse ser resolvido dessa forma.

E por último, há comentaristas que tentam até mesmo trazer a questão para o Brasil insinuando que o desastre no Golfo do México “deve alertar os brasileiros para a exploração e prospecção da Petrobrás no pré-sal”.

Interesse público

Por óbvio, os problemas da cobertura do desastre ecológico provocado pela British Petroleum no golfo do México não ocorrem apenas em períodos quando a agenda midiática está inteiramente submetida à lógica comercial de eventos da proporção de uma Copa do Mundo. Nestes períodos eles apenas se acentuam.

Por isso – e apesar de todo o envolvimento histórico cultural que os brasileiros temos com o esporte bretão – nunca é demais lembrar que, mesmo em época de Copa, o interesse público vai muito além do entretenimento e o mundo não se reduz ao futebol.

Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.

A falência do jornalismo impresso

Agência Carta Maior - 19/07/2010

O fim do Jornal do Brasil impresso e o papel do jornalismo público


O jornalismo de mercado, com o fim do JB impresso, revela, uma vez mais, sua incapacidade de dar solução para o problema da dívida informativo-cultural e para permitir, finalmente, que o povo brasileiro tenha acesso a uma tecnologia do século XVI, a imprensa de Guttemberg. Se estamos a caminho de superar a miséria absoluta, também é chegada a hora - sem confrontar com as modalidades de informação na internet, mas complementando-as - de também superarmos a indigência na leitura de jornal, a miséria informativo-cultural. O artigo é de Beto Almeida.

Beto Almeida (*)


“A minha cama é uma folha de jornal”

Noel Rosa

Primeiro foi o fechamento da Tribuna da Imprensa, logo seguido pelo fechamento da Gazeta Mercantil. Agora, o curso de agonia da imprensa comercial anuncia o fim do Jornal do Brasil em sua versão impressa. Junto dele está a vertiginosa queda de tiragem dos jornais que resistem, evidentemente acompanhada da clamorosa queda de sua credibilidade. Este talvez seja mais um alerta e mais uma oportunidade para discutir os limites quase que intransponíveis para o jornalismo no modelo comercial e a necessidade de insistir e estimular a conscientização e as iniciativas para a construção de um jornalismo público.. Indo direto ao tema: é bem provável que o presidente Lula tenha um papel histórico também para romper os tabus e preconceitos que impedem os brasileiros de ter um jornal de missão pública, nacionalista, popular.

Um jornal centenário, sonho de uma geração de jornalistas, inovador em forma e conteúdo, o Jornal do Brasil, que já vinha definhando, como muitos outros diários, agora anuncia que deixará as bancas. Não estará mais nas praias, nos botequins, nos escritórios, nos ônibus, nas universidades, nem mesmo nas feiras para embrulhar peixe.

Durante anos registrou dificuldades financeiras. Arrastou-se endividado em bancos públicos, muito embora sua linha editorial, como de resto de toda a mídia, hostil ao papel do estado na economia. Mas, não quando os recursos públicos salvam a crise.

A dívida informativo-cultural

Até quando vamos assistir este definhamento sem abrir um grande debate nacional sobre o futuro da imprensa no Brasil, sobre a dívida informativo-cultural acumulada, sobre a proibição, na prática, da leitura de jornal no Brasil pelo o povo? Até quando os jornalistas vão superar a discussão estreita que vem fazendo acerca da titularidade e diploma desvinculada da extinção concreta e incontornável de postos de trabalho e da proibição da leitura de jornal pelo povo? Multiplicaram-se as faculdades de jornalismo e reduzem-se os jornais e os postos de trabalho. Paradoxo! Tínhamos um exército de desempregados diplomados. Mesmo que o diploma volte a ser obrigatório, teremos ainda mais desempregados e menos lugar para trabalhar. E o povo sem ler jornal!

Enquanto a Argentina tem o jornal Página 12, o México tem o La Jornada, a Bolívia tem o jornal Cambio - criado há apenas 8 meses e já é líder de vendas - a Venezuela tem o Correio do Orenoco, todos fazendo o contraponto da linha editorial da imprensa oligárquica, teleguiada pelos interesses estrangeiros, no Brasil temos o domínio completo de uma imprensa anti-nacionalista e anti-popular. Não por acaso, com hostilidade unânime à candidata de Lula. São estes jornais e revistas contra a nacionalização do petróleo, criticam a reconstrução da indústria naval, exasperam-se com a valorização do salário mínimo, insistem na tese conservadora da disciplina fiscal, da austeridade, do corte de gastos, quando, evidentemente, o país precisa aumentar decididamente os investimentos públicos para dar sustentação ao crescimento econômico, que lhe permita reduzir as disparidades internas e as vulnerabilidades externas. Esta imprensa chega ao ponto de publicar documentação falsificada sobre uma candidata à presidência, a colocá-la em uma charge como personagem da prostituição (nenhuma ofensa deste escriba às trabalhadoras do sexo), mas, no seu discurso de falsa ética e moral, esta imprensa esquece que em suas páginas de classificados divulga, portanto associa-se comercialmente, deprimente atividade do comércio de sexo.

Última Hora e Le Monde

É hora de recorrer mais uma vez à história para repararmos como nascem e como morrem os jornais. Aqui vemos o JB definhar depois de passar a ser controlado por empresários favorecidos pela privatização. Estão perdendo leitores, mesmo quando há avidez para a leitura. Na França, o Le Monde nasceu após a Segunda Guerra estimulado por De Gaule, como parte de uma visão nacional.. Aqui no Brasil, percebendo a hostilidade unânime de uma imprensa movida por uma cruzada anti-nacional, o Presidente Getúlio Vargas também estimulou o nascimento do jornal Última Hora, popular, nacionalista, que informava sobre os temas de interesse da classe trabalhadora, criando um paradigma jornalístico.

Como praticamente todos os órgãos de imprensa, o Última Hora também recebeu créditos de bancos públicos. Por acaso o Jornal do Brasil nunca os recebeu? Ou O Globo? Ou a TV Globo, que nasceu de modo irregular, a partir de operação ilegal denunciada vastamente na CPI do Grupo Time-Life, também não recebeu? Por quantos anos a TV Globo foi favorecida por taxa subsidiada da Embratel para uso de satélites????

Deixemos de hipocrisia: os grandes grupos de mídia só se transformaram em gigantescos conglomerados em razão de inescrupuloso favorecimento creditício estatal e não em função de sua competência empresarial. Para monopolizar audiência a TV Globo chegou a atrasar em 9 anos a introdução do aparelho de controle remoto no Brasil, conforme denúncia do ex-Ministro das Comunicações, Euclides Quandt de Oliveira.

Fundação para o Jornalismo Público

Sustentamos que é chegada a hora para que seja levada ao presidente Lula - esta é afinal uma discussão estratégica de nação, não de mercado - numa proposta de criação de uma Fundação para o Jornalismo Público, destinada a tornar a leitura de jornal no Brasil um hábito democrático, popular, acessível, viabilizando a pluralidade e a diversidade informativas, cada vez mais ameaçadas quanto mais se fecham jornais. E para sustentá-la muitas alternativas podem ser discutidas, entre elas aquela mais utilizada pelos grupos de mídia que são sustentados em boa medida pelas verbas publicitárias do Estado ao qual tanto agridem. Ou contando com a participação de Fundos de empresas públicas, muitos deles com altíssima rentabilidade, que bem poderiam ter uma participação ativa nesta Fundação de natureza pública, destinada a cumprir aquilo que embora expresso na Constituição, está muito longe de tornar-se realidade no Brasil: a informação é um direito de todos os cidadãos.

O fim do JB no papel e o papel de Lula

O presidente Lula já criou a Empresa Brasil de Comunicação, cumprindo com disposto constitucional que, no seu artigo 223, estabelece que a comunicação deve ser complementar entre os sistemas público, estatal e privado. A TV Brasil vem fazendo esforços importantes para adquirir visibilidade nacional, audiência e qualidade informativo-cultural. E tem surpreendido positivamente, muito embora haja muito por fazer ainda.

Mas, na área do jornalismo, o que se nota é redução assustadora do número de jornais, da tiragem de jornais, de sua credibilidade, ao lado de uma incompreensível multiplicação de faculdades de jornalismo, uma verdadeira indústria de canudos, sem que se possa garantir aos formados, algum dia, a oportunidade de trabalhar naquilo em que estudaram. Propaganda enganosa?

O jornalismo de mercado, com o fim do JB impresso, revela, uma vez mais, sua incapacidade de dar solução para o problema da dívida informativo-cultural e para permitir, finalmente, que o povo brasileiro tenha acesso a uma tecnologia do século XVI, a imprensa de Guttemberg. Se estamos a caminho de superar a miséria absoluta, também é chegada a hora - sem confrontar com as modalidades de informação na internet, mas complementando-as - de também superarmos a indigência na leitura de jornal, a miséria informativo-cultural.

E o presidente Lula, por sua trajetória, pelas tantas chicotadas que tomou das mais maledicentes formas de preconceitos desta imprensa oligárquica, é o mais credenciado para encorajar e estimular, não uma revanche, mas uma solução democrática para que os brasileiros possam, finalmente, não apenas alimentar-se com regularidade, como crescentemente ocorre, mas também ter acesso a jornal para a leitura cidadã e não apenas para forrar o chão, como na música de Noel .

(*) Beto Almeida é Diretor da Telesur