sábado, 27 de fevereiro de 2010

Malvinas, juros e transgênicos

Na última semana o jornal da Globo anunciou em tom animador que o Brasil chegou ao segundo lugar na produção de produtos geneticamente modificados, perdendo apenas para os Estados Unidos. A reportagem animada entrevistou agrônomos e um porta voz da empresa Monsanto (aquela do agente laranja do Vietnã). Essa matéria que se diz jornalística contribuiu apenas para propagandear os benefícios dos transgênicos e seu papel fundamental na economia agrícola brasileira.
O interessante dessa reportagem me pareceu a ausência de qualquer cientista ou pesquisador qualificado para opinar contra os transgênicos ou pelo menos alertar quanto a utilização dessas sementes por parte dos agricultores e do próprio consumo  humano desses produtos.
Muitos países da Europa não estão aceitando receber produtos geneticamente modificados, a sua produtividade é discutível por especialistas sérios, a rotulagem não está presente na maioria dos locais que comercializam os produtos, a questão que envolve a precaução não está sendo respeitada quando se trata de meio ambiente (plantas e animais) e da utilização para o consumo humano, além do perigoso monopólio da semente e do herbicida utilizado por parte de quem detém a patente, isto é, a Monsanto. Todas essas questões e muito mais não são abordadas em uma reportagem que trata de um assunto tão sério quanto esse. Esse é um assunto.
O outro se refere as Malvinas. Quando o presidente Lula diz de forma clara que as Malvinas pertence a Argentina e não a um país que se encontra a milhares de quilômetros desse arquipélago tão disputado, e ao mesmo tempo faz críticas severas a Organização das Nações Unidas por se esquivar da questão, ele é criticado pelo ícone global William Waack. Segundo Waack Lula está entrando num jogo perigoso.
Mas o que fazer então, quando as reportagens e os comentaristas do estilo Miriam Leitão dizem constantemente que a inflação brasileira está aumentando de forma preocupante. Leia-se: para dar conta de um possível surto inflacionário precisamos de um remédio, que apesar de amargo é necessário, isto é, o conhecido aumento da taxa básica de juros. Tudo que o mercado financeiro precisa ouvir e sentir e o mercado produtivo das micro, pequenas e médias empresas não; justamente aquelas que geram a maioria dos empregos.
Quando o paciente está com gripe receita-se um antigripal e não uma quimioterapia. A quimioterapia no caso são os juros exorbitantes, que mesmo diante de uma crise financeira alguns economistas dos banqueiros e da própria academia (o que é mais grave, principalmente quando se trata de uma instituição pública) insistem que o Banco Central deva mostrar firmeza na condução da política monetária ortodoxa, isto é, manter o juro básico em um nível que mantenha a inflação sobre o controle (e que os especuladores continuem a ampliar seu capital); e em muitos casos, como o de agora, propagandear que seja mais alto ainda. Nesse caso o que irá sepultar as nossas pequenas esperanças de ver a economia crescer e se desenvolver será o remédio e não a gripe inflacionária.
Em um país que ainda tem tudo para ser feito, isto é, uma demanda reprimida brutal, desigualdade e carências sociais severas, falar em juros não parece discurso de um país que está em transformação. Por isso, o assunto da democratizção dos meios de comunicação e do acesso a cultura deverá ser enfrentado o mais breve possível, caso contrário, continuaremos a balizar ações contra nós mesmos. Se dependesse exclusivamente dos meios de comunicação e de uma parte da elite brasileira seríamos em breve o maior produtor de transgênicos do mundo e sepultaríamos a agricultura familiar, defenderíamos o imperialismo anglosaxônico em vez de estabelecer um elo de ligação e estreitamento com os nossos parceiros e vizinhos na defesa dos nossos prórios interesses  e concentraríamos ainda mais a renda desse pobre e ao mesmo tempo rico país com a utilização de políticas macroeconômicas de efeito quimioterápico.

Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A teoria econômica conservadora a serviço do neoliberalismo

Alguns debates no Congresso Nacional estão servindo de preâmbulo no que diz respeito a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigará a dívida pública brasileira. Lembrando que esses debates estão sendo transmitidos pelo canal de televisâo da Câmara dos Deputados e são importantes a medida que possibilitam que professores, profissionais do Tribunal de Contas da União e outros sujeitos interessados no Brasil compartilhem seus conhecimentos conosco sobre a real situação da economia brasileira na sua raiz política, fiscal e administrativa.
Que a CPI possa ser discutível em termos políticos, no sentido de não apresentar de forma transparente os reais motivos da oposição eu não tenho dúvidas; mas, ao mesmo tempo, alguns parlamentares e indivíduos interessados em discutir o Brasil sempre surgem ou se apresentam como impulsionadores desse processo, além de uma parte da sociedade civil organizada que quase nunca aparece nos meios de comunicação.
São essas as pessoas que me interessam, além do assunto evidentemente; e não os parlamentares fisiológicos e pragmáticos da oposição e também da situação.
Alguns especialistas que mantém relativa autonomia, condenam com argumentos bastante convincentes aquilo que a medida do possível estamos sempre debatendo e condenando, isto é, a política macroeconômica do governo federal. Essa política monetarista inicia sua trajetória mais incisiva a partir do Plano Real de 1994 onde os instrumentos de política monetária baseados em juros exorbitantes são utilizados para conter a hiperinflação desenfreada.
Passados mais de 15 anos de início do Plano Real o governo Lula insiste na política de juros elevados para manter a estabilidade macroeconômica (leia-se: controlar a inflação de forma artificial). A partir disso, foi firmado o acordo entre o PT, os partidos aliados e a burguesia antes das eleições que elegeram pela primeira vez Lula em 2003 para que Meirelles conduzisse a economia e recebesse a toga de Ministro e o Banco Central a autonomia discutível para decidir a vida de todos os brasileiros, principalmente de forma favorável a elite financeira..
Além da política monetária não controlar sozinha a inflação ela sustenta e reforça a ideologia neoliberal do capitalismo financeiro sem fronteiras. O que alguns de meus colegas economistas frisaram bastante nesses debates está relacionado com a política econômica essencialmente monetarista aplicada quase sem restrições pelo Comitê de Política Monetária do Banco Central. Além do impacto negativo nas contas públicas dos governos federal, estadual e municipal, os juros elevados causam déficits crônicos na balança comercial, diminuiição do crescimento econômico com perdas de empregos e dimuição da receita e consequentemente dos investimentos sociais com impacto em todas as demais políticas públicas.
A Era Neoliberal sofreu abalos importantes, principalmente pós crise de 2008, mas as políticas governamentais na área econômica continuam a alicerçar esse modelo, e que, evidentemente não são sustentáveis, mesmo no caso brasileiro, que apesar do crescimento econômico previsto animar alguns investidores e trabalhadores; essa ilusão tem prazo para se revelar.
Mantendo-se políticas monetárias contracionistas como essas a concentração de renda irá aumentar novamente, mesmo com a existência de políticas de fomento à atividade econômica. Essa política contribui apenas para a mobilidade de capital especulativo e não produtivo, principalmente em um momento em que o capitalismo não promoverá o pleno emprego de antes, pelo menos em parte do mundo desenvolvido.

Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Os desafios das lutas políticas

As políticas públicas denominadas de "discriminação positiva" como as cotas sociais, raciais, étnicas e de renda, quando, adotadas de forma a procurar não estigmatizar as minorias, correspondem ao quase mínimo em termos de sobrevivência e dignidade em relação aos mais carentes. Mas, as demandas sociais reprimidas são de todos aqueles que carregam o fardo e pertencem à engrenagem da subjugação da hierarquia de poder capitaneados pela divisão social e internacional do trabalho.
O desenvolvimentismo e o Estado de Bem Estar Social são ampliações das necessidades de potencializar o capitalismo ou sair do atraso, e, em alguns casos ocorre por adequação das demandas mais complexas em Estado-Nações onde o cooperativismo, quase que socialista, ocorrem em países de capitalismo conjugado com outros níveis de demanda, que abarcam a vida em um âmbito de relações que perpassa a sobrevivência física; no sentido da promoção dos prazeres do bem estar e não apenas da subsistência. Em uma ideologia baseada na alienação esquizofrênica como propor novas alternativas de combate ao capitalismo desenfreado e ao mesmo tempo sedutor, singelo e promotor da liberdade de escolha e da individualidade?
Afinal, o lassez fare encanta o imaginário, pasteuriza os fetiches e se ampliam os desejos e não coloca barreira as fruições. Até quando o capitalismo irá seduzir e cooptar os cidadãos da pequena burguesia e as relações de troca das minorias?
O socialismo ainda me parece a melhor alternativa, mas o itinerário a ser percorrido e a organização da luta deverá buscar novas formas de inserção e de apelo para tentar evitar o que o capitalismo continua fazendo, isso é, contendo a democracia através dos instrumentos que remontam aos aparelhos ideológicos da desinformação e a cooptação materialista fetichista.

Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Uma outra alternativa é possível?

AGÊNCIA CARTA MAIOR - 16/02/2010

DEBATE ABERTO



Radicalização da democracia e socioambientalismo



Para avançar na radicalização da democracia, implantando bases de democracia econômica e social, faz-se necessário revisar profundamente nossas idéias de desenvolvimento. Não dá mais para condicionar a justiça social ao crescimento do mesmo que cria injustiça e destruição.

Cândido Grzybowski

O momento histórico que vivemos exige muita criatividade e ousadia. A grande crise, que ainda sacode o mundo, provocou desmanches de todo tipo, particularmente no que pareciam ser as fortalezas da globalização capitalista neoliberal. Defrontamo-nos, no Sul e no Norte, no Leste e no Oeste, com a insegurança, a incerteza e a falta de idéias-força nas quais se agarrar. Isto vale também para nós aqui no Brasil, pois ninguém mais pode se isolar neste mundo totalmente interdependente. Aliás, cresceu muito nossa presença e, portanto, a densidade das relações que temos com outros povos do Planeta e nossa responsabilidade quanto aos destinos do mundo.

As forças e interesses dominantes do capitalismo globalizado se rearrumam. Apesar do maior protagonismos dos governos e do resgate das políticas de regulação, com monumental transferência de recursos públicos para setores em crise, especialmente bancos, tudo parece caminhar para ajustes e não reais mudanças, recompondo a (des)ordem e sua ameaças à humanidade e o Planeta. A própria geopolítica mundial se reorganiza, com o fim da dominância unipolar dos EUA e a emergência a primeiro plano da China, como outro polo. Um pouco mais de multilateralismo, com o G8 virando G20, mas com a usurpação do real poder pelos que contam. Vale registrar o papel complementar a esta nova bipolaridade do mundo, claramente revelada nas negociações sobre clima em Copenhagen, dos BASIC – Brasil, África do Sul, Índia e China, deixando a velha Europa ainda mais confusa. No meu modo de ver, isto não é esboço de mudança profunda, mas antes um ajuste do sistema capitalista mundial aos novos desafios.

Mas cresce a percepção da necessidade de mudanças, de que outro mundo não só é possível, mas se faz necessário. A grande frustração com o que aconteceu em Copenhagen é um alerta. Pouco dá para esperar do que está em curso, promovido pelos governantes. Faz-se necessário um movimento irresistível que brote do interior das sociedade civis, de caráter intelectual e político, organizativo e político, capaz de gestar e alimentar uma nova visão e uma nova cultura cidadã sobre o mundo que é necessário construir em substituição a esta civilização em crise. Movimento que, como uma onda, se propague por todo o Planeta. Movimento que resgate o melhor da enorme herança das lutas por justiça social e democracia substantiva e das lutas em defesa do meio ambiente, fundindo-as num novo imaginário. Movimento que, como uma onda, se propague por todo o Planeta, se torne um referente para diferentes povos e sujeitos coletivos. Movimento que proponha e torne incontornável uma nova agenda na arena política mundial.

A crise de civilização industrial, produtivista e consumista, criada pelo capitalismo, com as dominações, exclusões e desigualdades que forja, e com a enorme ruptura com a base natural da vida e a destruição ambiental que provoca, põe um enorme desafio para todos e todas que lutam por democracia e justiça social. Estamos num impasse. Para avançar na radicalização da democracia, implantando bases de democracia econômica e social, faz-se necessário revisar profundamente nossas idéias de desenvolvimento. Não dá mais para condicionar a justiça social ao crescimento do mesmo que cria injustiça e destruição. Não se trata apenas de democratizar esta civilização industrial, mas antes de mudá-la para parâmetros de biocivilização, incorporando na perspectiva de radicalização da democracia a necessidade de uma outra relação com a natureza e os bens comuns. Trata-se, na verdade, de criar um imaginário socioambiental como base de sociedades sustentáveis, justas social e ambientalmente, participativas e solidárias.

A elaboração conceitual, teórica e política, que junte as demandas de justiça social e justiça ambiental de uma perspectiva de democracia radical, exige uma grande capacidade criativa e esforço de diálogo e articulação entre movimentos, organizações, lutas muito diversas. Trata-se de radicalizar a alteralidade, o reconhecimento e a valorização de sujeitos e identidades diversas, na construção de uma bloco de forças políticoculturais renovador e capaz de disputar hegemonia na sociedade.

O risco deste momento que vivemos é o meio ambiente ser isolado e ser elegido como a grande agenda, tratado como nova frente de expansão de negócios, independentemente da própria crítica do desenvolvimento e dissociado das grandes questões da justiça social, direitos humanos e democracia. Mas temos a oportunidade de transformar isto tudo partindo de uma perspectiva de radicalização da democracia e pondo na agenda um socioambientalismo que nos leve à democracia econômica, social e ambiental. Esta é uma agenda propositiva, que pode ser levada se formos capazes de gerar uma nova onda de democratização puxada pela cidadania, como fizemos no passado recente.

Cândido Grzybowski, sociólogo, é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).





REVISITANDO ALGUMAS DAS TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

INTRODUÇÃO



O campo de investigação ou estudo das Relações Internacionais data do final do primeiro conflito político-militar em escala mundial, conhecido como a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa de 1917. Uma época em que as decisões econômicas que envolviam o lastro ouro da libra esterlina inglesa e o dólar evidenciavam que um vácuo de liderança político-institucional e econômico em nível mundial ampliava o debate sobre questões que envolviam uma nova ordem mundial, hegemonia e legitimidade entre as nações em um cenário de destruição e incerteza em torno das disputas dos impérios que se consolidavam no final do século XIX.

O debate intelectual, político e ideológico acerca das relações de disputa, antagonismo e posicionamento internacional perante as dificuldades políticas e econômicas iniciava uma trajetória de construção de métodos e conceitos que tinham a pretensão de permitir compreender a natureza e o funcionamento do sistema internacional. Explicar os fenômenos mais importantes que moldam a política mundial e as principais características dos processos que se desdobram em ações, interações, conflitos e negociações entre as nações em universo global passa a ser tarefa de um grupo de pensadores que se debruçam para formular teorias que contribuam no sentido do entendimento desse processo.

Intelectuais das ciências humanas ainda incipientes como a economia e a sociologia procuravam, antes mesmo, do período citado anteriormente como o marco da apresentação do estudo das Relações Internacionais, abordaram assuntos que envolviam relações econômicas e políticas entre as nações. Adam Smith e David Ricardo no final do século XVIII e início do XIX elaboravam teorias de comércio internacional como as vantagens absoluta e comparativa respectivamente e Karl Marx em meados do século XIX já propunha um movimento internacional de trabalhadores organizados no sentido de transformar as relações econômicas, sociais e políticas com o objetivo de abolir a propriedade privada e o próprio Estado além das fronteiras nacionais. As convenções internacionais (socialista-comunista) de trabalhadores são o exemplo de como alguns pensadores entendiam as transformações do mundo moderno além de suas fronteiras.

Em uma perspectiva teórico-crítica trata-se de incluir em pé de igualdade algumas correntes de pensamento das relações internacionais consideradas marginais (que derivam do marxismo e de outras correntes críticas) perante as teorias consideradas matrizes de pensamento como o realismo e o liberalismo. Desta forma, a proposta deste trabalho é apresentar as teorias das relações internacionais de forma reduzida, porém concisa, discutindo as principais idéias de cada corrente de pensamento, e, ao mesmo tempo, abordando de forma crítica e reflexiva os conceitos e os movimentos que acompanham os interesses políticos e ideológicos tanto de conservadores quanto de progressistas, seja na matriz das idéias ou nas propostas práticas resultantes das teorias subjacentes.

No capítulo 1 abordaremos as questões que envolvem as duas principais correntes de pensamento de matriz conservadora e de influência iluminista no que tange o estudo das relações internacionais, procurando fazer uma leitura que foge ao maniqueísmo do certo ou errado, do bom ou mal, mesmo, apontando para as teorias de forma a classificá-las entre conservadoras, críticas ou progressistas. A idéia de não demonizar ou fazer apologias aos conservadores ou críticos me parece um caminho mais transparente, apesar da provocação que faço quando rotulo as teorias existentes, impedindo que a falsa neutralidade escape aos olhos dos mais desavisados.

Portanto, distanciamento do objeto a ser observado e neutralidade não são sinônimos, pelo menos no que diz respeito a esse trabalho de apontamento e discussão acerca das teorias que envolvem o universo ou campo de estudo das relações internacionais.

No capítulo 2 abordaremos o marxismo e a teoria crítica e suas implicações, controvérsias e debates com as teorias apresentadas no capítulo 1 da nossa discussão. As teorias do construtivismo e dos pós-modernos ou pós-estruturalistas não serão discutidas nesse trabalho, mas chamamos a atenção para a necessidade de também debatê-las, mas em um outro momento devido a critérios de recorte, já que não houveram condições de fôlego para ampliarmos essa discussão.

No capítulo final ou considerações finais faremos um resumo das teorias abordadas nesse trabalho e discutiremos como essas teorias podem contribuir para construir alternativas de pensamento e formas de organização intelectual no sentido também, de contribuir com atitudes, comportamentos e ações políticas em torno do tema que não está apenas circunscrito em um ambiente acadêmico, mas está colocado, perante a inserção do Brasil no cenário internacional e o próprio movimento de globalização que nos cerca.

CAPÍTULO 1 - REALISMO E LIBERALISMO COMO CORRENTE TEÓRICA DOMINANTE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

I - O REALISMO

Ao longo do século XX o realismo torna-se a corrente de pensamento dominante da teoria das relações internacionais nos círculos acadêmicos, não apenas nos Estados Unidos, mas também em grande parte das Universidades pertencentes ao quadrante noroeste do mundo.

Para legitimar o estudo das relações internacionais o percurso intelectual tomado recuperou alguns autores clássicos da ciência política como Maquiavel e Hobbes e até mesmo da história, filosofia e os estudiosos das estratégias militares da antiguidade como Tucídides. A afirmação da disciplina e do estudo acadêmico em escopo mais amplo por parte das relações internacionais levou alguns acadêmicos, pensadores e intelectuais representantes do realismo a renegar o papel das ciências sociais como fonte de inspiração teórica e epistemológica, mesmo que essa tenha bebido na fonte de abordagens intelectuais diversas das ciências humanas e inclusive algumas consideradas naturais.

A visão dos realistas em relação a teoria das relações internacionais pode ser ilustrada através da interpretação do próprio Tucídides quando afirma que um mundo onde os poderosos fazem o que tem o poder de fazer e os fracos aceitam o que tem que aceitar induzem a uma lógica de engajamento em conflitos, já que a sobrevivência e o medo de sucumbirem são argumentos convincentes em termos de preparação para as guerras.

A afirmação de Tucídides passa a ser emprestada pelos realistas na formulação de conceitos fundamentais que norteiam essa escola acadêmica. Esse é o caso do conceito que mais tarde será denominado de anarquia internacional; quando em um determinado momento, devido a ausência de uma autoridade legítima e soberana no nível internacional os países se sentem desprotegidos e sem uma referência de apoio no que tange a uma determinada mediação de conflitos e a utilização de sanções contra aqueles que infringirem as regras propostas pela comunidade internacional sustentada pelo pilar de uma potência hegemônica soberana.

Esse, inclusive, é o argumento dos Estados Unidos quando utiliza a força militar na forma de ataques preventivos e de sanções contra aqueles que não obedecerem a certas regras e normas tanto explicitas quanto implícitas nas relações internacionais.

Outra postura prática comum as potências, balizada pelas abordagens dos teóricos clássicos como Maquiavel, se refere a ênfase do Estado como ator global no que tange a necessidade deste de utilizar a balança do poder e as estratégias em torno de alianças para fazer cumprir as premissas da segurança e da ordem institucional internacional. Trata-se, portanto de lidar com o mundo real e não com um mundo como deve ser, desmistificando, assim, as abordagens utópicas e idealistas de alguns autores representantes dessa corrente de pensamento.

Hobbes empresta a corrente realista o conceito de estado de natureza, que compara com o estado de anarquia no sistema internacional. Para os realistas o Estado soberano deve salvaguardar o interesse do sistema internacional através do uso legítimo da força; mas como o uso da força está limitado ao Estado Nação e algumas poucas situações de intervenção no plano externo, o sistema internacional permanece desprotegido e em contínua anarquia.

A própria concepção de Estado como o “Deus Mortal” de Hobbes em o Leviatã passou a ser implementada de fato a partir das grandes revoluções burguesas capitaneadas pela Europa no século XVII através da matriz inglesa. O conceito de Estado que abrange as disciplinas do direito e da política são utilizados e referenciados e as correntes de pensamento precursoras das relações internacionais como o idealismo e o realismo se apropriam dessa matriz de pensamento. A filosofia, economia, geografia, história e sociologia contribuem com a matriz de pensamento no que tange a construção das teorias que envolvem as relações internacionais, mas algumas dessas disciplinas são renegadas a princípio, mesmo que no contexto dessas teorias esteja clara a utilização dessas matrizes.

Segundo Messari e Nogueira:

“Falta salientar, também, que todas essas influências na visão realista das relações internacionais são centradas na natureza do ser humano. De fato, todas enfatizam uma percepção negativa do ser humano e destacam três fatores como determinantes da natureza humana: o medo, o prestígio e a ambição. O medo de ser aniquilado devido à ação dos outros e o prestígio que o poder (ou a impressão de poder) confere são centrais para explicar o comportamento do ser humano. Como esses autores deduzem a natureza do sistema internacional da natureza humana, entendem que o medo e o prestígio explicam, em larga medida, o comportamento dos Estados no sistema internacional.”

A teoria realista possui várias vertentes de pensamento, mas as questões que denotam o papel central do Estado permanecem como o núcleo pensante comum a todas, além da desconfiança na natureza dos indivíduos e a idéia de poder, tanto na busca pelo equilíbrio do poder quanto para na conquista do poder segundo a visão de cada corrente inserida no realismo.

Os realistas consideram que o Estado age de maneira uniforme e homogênea e evidentemente racional em defesa do interesse nacional, sendo que a complexidade dos processos internos não é levada em consideração. Portanto, a defesa do interesse nacional, a preservação e a permanência do Estado como ator nas relações internacionais é uma premissa básica.

O realismo em particular e as relações internacionais no geral podem ser entendidas a partir de um divisor de águas pontuado pela abordagem teórica de um de seus autores principais; a saber, Hans Morgenthau. Seu livro sobre a política entre as nações marcou o início da trajetória do realismo como corrente de pensamento e refletia os princípios teóricos trabalhados pelos autores clássicos mencionados: Tucídides, Maquiavel e Hobbes. Tais princípios, definem e diferenciam o realismo em relação a qualquer outra perspectiva ou teoria das relações internacionais.

Em um dos seus princípios, que podemos enumerar como o primeiro, Morgenthau afirmou que a política, assim como a sociedade, é governada por leis objetivas que refletem a natureza. O segundo princípio define os interesses em termos de poder, afirmando a importância de entender que todos os Estados têm as mesmas motivações; o poder. Nesse princípio a razão caracteriza a esfera política, ao mesmo tempo em que, as preferências ideológicas não devem ser levadas em consideração.

O terceiro princípio destaca o poder como um conceito universalmente definido, mas observa que esse poder pode variar com o contexto e o lugar nos quais esse poder é exercido. O quarto princípio estabelece a importância dos princípios morais como o condutor da ação política, sendo o limite desse princípio definido pela prudência. Podemos ilustrar em termos de conduta desse princípio o fato de que o estadista tem que ter claro que a segurança e os interesses do Estado não podem estar ameaçados. No quinto princípio devemos entender que os princípios morais não são universais, mas sim particulares, isto é, as aspirações morais de uma nação não se aplicam aos demais países do mundo. No sexto e último princípio a autonomia da esfera política está acima de outros valores e esferas como a jurídica e a religiosa. Por estudar fenômenos específicos e ao mesmo tempo, de vital importância para a sobrevivência a política tem legitimidade e autonomia em relação as demais esferas sociais.

• O REALISMO CLÁSSICO E SEUS CRÍTICOS

Alguns autores da corrente realista propuseram um debate mais aberto acerca das possibilidades e entendimentos acerca da centralidade teórica do realismo a partir de uma matriz intelectual clássica e o desenvolvimento dessa, a partir de autores contemporâneos como Morgenthau.

Autores como Carr e Herz não consideram idealismo e realismo mutuamente exclusivos, já que, o papel transformador de uma sociedade e as perspectivas de compartilhamento entre as nações precisam ser inspiradas por um ideal. Para trilhar um caminho, construir espaços e amplos canais de diplomacia a ferramenta utópica, a visão idealista juntamente com o entendimento da realidade formam uma simbiose necessária para o planejamento do mundo a nossa volta. Além disso, a questão ética, a transparência também ajudam a pensar os dilemas postos à mesa quando se trata de relações internacionais.

No caso da manutenção da segurança o dilema se apresenta da seguinte maneira: quando um estado deseja garantir a sua própria segurança os demais podem sentir-se ameaçados quando percebem que para isso precisam se armar e isso poderá provocar um desejo ininterrupto de fortalecer ainda mais as suas bases. A corrida armamentista faz parte de um sistema internacional que não encontra uma autoridade superior aos Estados.

O pensador francês Raymond Aron afirma que o sistema internacional carece de centralidade em relação a valores e leis enquanto que no plano nacional ou estatal ocorre justamente o inverso. Com isso, na sociedade internacional, os Estados não são guiados por normas e leis, mas sim por seus interesses próprios.

Esses interesses podem ultrapassar as barreiras das disputas políticas e econômicas e procurarem objetivos não materiais como o prestígio e idéias (onde podem estar inseridas culturas, valores étnicos e vínculos de ordem religiosa e afetiva, ou mesmo xenófobas).

Mas entre o realismo e o idealismo podem entrar nesse contexto os racionalistas com uma proposta, talvez intermediária, a partir da utilização de mecanismos do direito internacional, construídos ao longo de séculos e evidentemente aperfeiçoados após uma longa história de conflitos entre as nações. Mesmo que alguns estados não partilhem dos mesmos objetivos e interesses, a existência de um conjunto de regras e normas organizadas no plano do direito internacional permite a convivência pacífica entre as nações.

A abordagem de Wigth provoca inquietações quando afirma que não há propriamente uma teoria internacional sobre as relações internacionais. O autor assinala que as teorias são particularistas, impregnadas de valores e interesses dos lugares em que tais teorias são produzidas.

Podemos transportar essas afirmações de Wigth quanto as revoluções e guerras que são consideradas como eventos separados e não padrões de eventos. As teorias produzidas não terão significado ou nível de teoria em plano internacional enquanto as teorias forem produzidas de forma a se ajustarem a situações conflituosas muito localizadas e não no plano geral.

• O NEO-REALISMO E O DEBATE CONTEMPORÂNEO

A partir do divisor de águas da década de 1990 com a derrocada da ex-União Soviética e o advento de uma globalização financeira-comercial em moldes neoliberais na esteira da terceira revolução industrial as teorias das relações internacionais se multiplicaram, assim como a crítica a corrente realista.

O realismo estrutural ou neo-realismo concentrou-se nas explicações conservadoras de Waltz que declarou a sua teoria como a teoria de política internacional e definiu a balança de poder como seu eixo central. Podemos afirmar que esse centralismo conduz a uma visão, quase que de inevitabilidade de mudança. A teoria tomada como verdade absoluta ou como chave explicativa para quase todos os tempos e realidades colocou de volta o realismo no centro do debate das relações internacionais a partir dos anos de 1990.

A versão de Waltz ganha corpo devido as abordagens conceituais elaboradas por ele e colocadas em prática pelos Estados Unidos já durante os anos Reagan (1980-88) e a recém administração Bush (2000-08). O autor propôs substituir o conceito de balança de poder pelo de balança de ameaças. Os estados se posicionam para o conflito não em resposta aos poderosos, mas aos ameaçadores. Em outra abordagem que corrobora a esses postulados teóricos o autor discute a defesa do estudo da guerra por considerar como o que define o estuda da segurança internacional. As doutrinas Reagan e Busch beberam na fonte de Waltz, além de outros evidentemente.

Farred Zakaria colocou no centro do debate a política doméstica afirmando que as políticas internas de uma nação definem as políticas externas, questionando a separação entre os níveis doméstico e externo. Essas interpretações diferenciadas procuravam alternativas para explicar o mundo cada vez mais dinâmico e interdependente e ao mesmo tempo tentavam defender a teoria realista dos ataques insistentemente sofridos, graças em grande parte a abordagem do realismo estrutural bastante conservadora.

II – O LIBERALISMO

A corrente liberal se faz presente e atuante como um dos paradigmas dominantes na teoria das relações internacionais e seu grau de influência e capacidade de disseminar-se aumenta consideravelmente a partir do término da guerra fria.

Apesar do discurso e da prática do realismo estarem conectadas as políticas neoliberais a partir dos anos de 1990 com a derrocada do sistema soviético e das elaborações normativas do consenso de Washington, o realismo continua tentando desacreditar a teoria liberal como corrente alternativa a formulação de uma teoria das relações internacionais. Vamos tentar identificar algumas posições do liberalismo.

A teoria liberal clássica surge a partir do advento do Iluminismo na Europa das revoluções burguesas de final do século XVIII. As preocupações do pensamento liberal permeiam as relações entre os indivíduos, sociedades e governos no âmbito doméstico ou interno. As preocupações com as relações internacionais datam da Primeira Guerra Mundial, e assim mesmo, tratada por uma minoria de pensadores dessa corrente.

Nessa corrente de pensamento as liberdades do indivíduo aparecem no centro do debate teórico e político. A idéia de indivíduo não passava pelo filtro ideológico e político em sociedades feudais, o mesmo aconteceu com as questões que envolvem igualdade e liberdade. Sociedades fechadas e conservadoras como grande parte dos sistemas anteriores não deixava espaços para se pensar o lugar ou o papel do indivíduo na história, segundo os princípios e valores que nos regem atualmente. É por isso que o liberalismo surge como uma visão de mundo bastante inovadora para sua época e libertária frente as necessidades do momento político e econômico que as sociedades aclamavam.

A matriz ideológica do liberalismo reside na idéia das garantias contratuais individuais serem respeitadas segundo a abordagem de Locke e também da apologia do mercado auto regulável segundo a mão invisível de Adam Smith. A realização dos homens livres segundo seus próprios interesses, cuja a autonomia deve ser preservada produz resultados sociais positivos, mesmo que alguns liberais considerem os homens egoístas e instáveis.

Os indivíduos que respiram liberdade e autonomia frente as suas decisões políticas e econômicas conseguem produzir sinergias favoráveis a melhoria de todos em conjunto, e, conseguem com isso, um ordenamento estável em nível social proporcionando um nível de auto-regulação aguçado e desenvolvido. Com o desenvolvimento das forças produtivas e do sufrágio as sociedades humanas estariam aptas a ultrapassar as fronteiras das amarras das sociedades feudais anteriores e alavancar o progresso baseado na idéia central da razão.

Os liberais entendem que o Estado é necessário para garantir a defesa contra os inimigos externos e também contra aqueles que desrespeitam as leis, mas ao mesmo tempo, a desconfiança do Estado reside na capturação deste por forças tirânicas e que desequilibram as sociedades no sentido econômico e político. Essa instabilidade pode gerar conflitos externos e ameaçar a segurança dos residentes e das demais nações. Desta forma, os liberais consideram nociva a intervenção massiva do Estado em quase todos os campos, podendo ser uma ameaça à liberdade no interior dos Estados.



Segundo Nogueira e Messari:

“No que concerne a natureza conflituosa da anarquia que caracteriza o sistema internacional, os liberais tendem a concordar com os realistas. Uma sociedade sem governo dá lugar as discórdias incessantes entre interesses divergentes. Uma das características que diferenciam a tradição liberal, contudo, é a não aceitação dessa condição como imutável. A crença no progresso estende-se às relações internacionais, afirmando a possibilidade de transformar o sistema de Estados em uma ordem mais cooperativa e harmoniosa.”

Como já dissemos anteriormente, liberais e realistas concordam com a participação do Estado em muitas das questões que envolvem as disputas e interesses distintos entre as nações e também quanto algumas medidas tomadas para salvaguardar os interesses das classes dirigentes no interior dos Estados nacionais. As disputas entre correntes teóricas divergentes nesse caso aparecem quando o realismo acusa o liberalismo de ingenuidade, utopia e idealismo no que tange a abordagem teórica de idéia transformadora de um mundo ainda em progresso científico, tecnológico e humano (político, cultural e social) que poderá viabilizar uma ordem mais cooperativa e harmoniosa.

Apesar das críticas contundentes dos realistas, a corrente liberal entende que seja possível ocorrer uma mudança significativa no que diz respeito ao aprimoramento dos processos de cooperação, promovendo um maior equilíbrio entre as partes interessadas no jogo geopolítico dos Estados Nacionais. Desta forma, vale lembrar que existem três pilares fundamentais para atingir um estágio mais avançado de cooperação, integração e harmonização entre os países: a saber, o livre comércio, a democracia e as instituições internacionais.

Essa visão do pensamento liberal na forma mais elaborada passa pelos teóricos Keohane e Nye, que entende que as decisões tomadas em cada país têm efeitos recíprocos. Nesse caso, devemos entender que as relações de interdependência exercem poder e influência entre diversos países, sejam atuantes ou não no cenário internacional.

Quando determinados países mantém laços com outros países parece significativo afirmar que as políticas produzidas em quaisquer desses grupos de países afetam os demais em um grau maior de intensidade conforme o grau de interdependência ou de relação estreita que se tenha e/ou mantenha.

Essas relações entre os países podem avançar para uma multiplicidade de contatos em diversos segmentos do campo político, econômico, cultural e social abrindo caminhos para a interdependência com níveis de correlação maiores. Mesmo aqueles países que não participam ativamente dos blocos econômicos, parcerias estratégicas ou relações diplomáticas mais extensas podem ser afetados por decisões das quais não participou. O peso dos Estados nas relações de interdependência podem causar descompassos e desigualdades mais acentuadas de acordo com as políticas adotadas em países mais desenvolvidos. Keohane e Nye desenvolvem alguns aspectos importantes para explicar as relações que envolvem a interdependência complexa e abordam três características centrais:

1. Existência de múltiplos canais de comunicação e negociação.

• Contatos informais: que podem ocorrer entre diferentes agências e órgãos do governo.

• Diversidade de atores: Não apenas os funcionários das relações exteriores e burocratas dos governos, como também empresas e organizações não governamentais (ONGS).

• As organizações internacionais: exercem um papel maior no processo de negociação e cooperação.

2. Agenda múltipla.

• As agendas dos países englobam questões que envolvem segurança, meio ambiente, comércio, cultura e outros temas.

• Na interdependência complexa não se verifica um processo hierarquizado a partir de prioridades dos temas envolvidos, eles são conduzidos sem consideração de natureza estratégica.

• As fronteiras entre o doméstico e o internacional estão se perdendo a medida que as interconexões se multiplicam na arena global.

3. Utilidade crescente do uso da força.

• Nesse quesito a interdependência complexa implica em propiciar um debate e um envolvimento maior entre os países no que tange o interesse de resolver conflitos procurando descartar o uso da força militar.

• As negociações aparecem como a única forma plausível de resolver conflitos de natureza econômica, já que o uso da força não resultará em uma melhora na situação econômica.

• O poder militar não consegue resolver questões que envolvam a utilização de recursos naturais e tarifas aduaneiras.

Apesar dessa concepção ser bastante criticada pelo pensamento realista, ela tem o mérito de propor soluções por via de um processo incessante de negociações e cooperações entre os países, e quase sempre incentivando o diálogo, com intuito de procurar resolver conflitos acerca dos vários assuntos que envolvem disputas entre as nações.

Portanto, entendemos que o liberalismo apresenta enfoques mais contundentes em termos de debate nas relações internacionais, já que o modelo de interdependência demonstrou ser plausível em termos da realidade atual, entendendo que não há outro caminho quando se lida com disputas entre nações que tem interesses divergentes.

O fortalecimento das agências ou mecanismos de negociações multilaterais tornam-se fundamentais, mesmo que as desigualdades se apresentem em termos de peso político e econômico em favor das potências hegemônicas. Essa abordagem se aproxima mais dos idealistas do início do século XX que entendiam os canais de comunicação como instrumentos necessários para garantir a paz mundial. Apesar das diversas correntes liberais apresentarem enfoques evidentemente diversos os liberais tornaram-se mais realistas no sentido prático do que a própria corrente que os critica, isto é, os teóricos realistas.

CAPÍTULO 2 – MARX NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E A TEORIA CRÍTICA

I – O MARXISMO

Marx não precisou elaborar uma teoria das relações internacionais para que entendêssemos que a força histórica do sistema capitalista ultrapassaria as fronteiras dos Estados nacionais e fecundaria um processo de acumulação ampliada de capital e ao mesmo tempo influenciaria a gestão dos países, trazendo conseqüências ao processo de absorção da classe trabalhadora em um novo patamar de divisão social e internacional do trabalho. Mas o antagonismo de classes estava presente na gênese desse movimento incessante e reprodutor de mais-valia e atingiria a soberania dos países e também as disputas entre os impérios por novas fontes de matérias-primas e riquezas advindas das semicolônias.

A extensão para a periferia do mundo moderno do modo de produção capitalista criaria as condições para a aceleração de seu processo de superação segundo Marx. A ampliação desse sistema conduziria a estagnação desse próprio sistema via a concentração de capital e a queda da taxa de lucro e abriria as portas para um novo sistema econômico-político: primeiro o socialismo depois o comunismo.

A abordagem política marxiana e marxista aponta para a organização da classe operária além das fronteiras nacionais e permitiu promover a intensificação do antagonismo de classes no sentido da politização dos indivíduos via a criação de jornais, partidos políticos e sindicatos e as próprias contradições do sistema, marcado pela rivalidade entre capital e trabalho.

A criação de uma organização internacional de trabalhadores sobre o manto do socialismo provocou o movimento de busca pela emancipação da classe operária e a teoria política de Marx contribuiu para fornecer os atributos teórico-metodológicos e ideológicos necessários ao fomento da transformação social.

A teoria política de Marx trouxe a discussão alguns elementos importantes sobre a maneira de se pensar a luta política, o sistema capitalista e a organização dos Estados nacionais em termos de construção política e econômica. Desta forma, a necessidade de organizar as classes trabalhadoras em escala nacional, a centralidade da solidariedade internacional para as lutas dos trabalhadores e o próprio envolvimento desses com as políticas das nações e entre nações são consideradas peças chave na direção do entendimento da necessidade da transformação política.

Segundo Costa:

“Portanto, na própria dinâmica do sistema capitalista já está inscrito o seu código genético, pelo qual a apropriação do trabalho não pago por parte dos proprietários dos meios de produção e a concorrência por mercados leva inevitavelmente esse sistema à concentração e centralização do capital, cientificamente identificado por Marx. Dessa forma, o atual processo de fusões e aquisições dos grandes conglomerados internacionais e nacionais não é nada mais nada menos que o nome moderno do fenômeno descrito em O Capital, em meados do século 19. A elaboração teórica de Marx e Engels conduz a um processo que a dialética de desenvolvimento do modo de produção capitalista não só levaria à concentração e centralização do capital, mas a um processo semelhante ao que estamos observando agora com a globalização.”



Para alguns discípulos de Marx como Lênin a luta de classes assume uma nova forma, manifestando-se por intermédio dos conflitos entre Estados, ou seja, entre oprimidos e opressores. A idéia central da herança teórica de Marx é a manutenção da coerência política no sentido de atuação interna e externa, ou a manutenção do conteúdo de classe no plano estatal e internacional.

Lênin confere ainda uma autonomia do Estado quando se trata de interesses nacionais que se diferenciam dos interesses da classe dominante e também em relação ao setor externo. O conceito de imperialismo procura atender uma lacuna deixada por Marx no que diz respeito ao tratamento das diferenças e conflitos entre os países. O caráter próprio da luta de classes permanece, só que agora, superando as abordagens de Marx.

Alguns autores chamados de dependentistas como Raul Prebisch e Celso Furtado filiam-se ao pensamento keynesiano e outros como Theotônio dos Santos, Samir Amin e Immanuel Wallerstein filiam-se a corrente do marxismo-leninismo que pretende avançar quanto às razões do subdesenvolvimento. Na dinâmica explicativa para o subdesenvolvimento e as demais desigualdades entre classes e países, o desenvolvimento das forças produtivas globais com o intercâmbio desigual, as ações das multinacionais e a hegemonia dos países capitalistas centrais fazem parte do rol de situações que possibilitam a dominação e a conseqüente desigualdade entre os diversos países do globo.

Os dependentistas, em grande parte, estiveram interessados nos aspectos econômicos e não na formulação de uma teoria de política internacional. A expansão do capital monopolista que é fruto de um processo de concentração de capital é essencialmente um fato econômico, uma vez que, o processo de intensificação das estruturas oligopólicas continua de forma acelerada, principalmente a partir dos anos de 1970, influenciando direta e indiretamente as políticas públicas e diminuindo o grau de soberania dos países devido ao processo de reprodução e ampliação do capital.

As teorias da dependência preocupam-se com os problemas do desenvolvimento desigual e as formas como a desigualdade se manifesta na economia internacional. Outro destaque importante em relação a abordagem marxista se localiza na luta de classes estendida a um plano internacional e a obra de Samir Amin é um exemplo de como esse antagonismo assume um caráter antiimperial.

Segundo Nogueira e Messari “Mais do que um instrumento de dominação das classes dominantes nacionais, o Estado dependente é visto como um instrumento da dominação da burguesia internacional”. A grande crítica do autor está relacionada a forma como os países terceiro-mundistas estão conectados a um sistema de trocas internacional que na base é desigual. A proposta desse autor passa pela ruptura com esse sistema dependente e excludente, entendendo que seja preferível uma estratégia de desvinculação, baseada numa teoria semi-nacionalista e semi-marxista. Isso significa que o modelo chinês se aproxima de uma alternativa mais autônoma e revolucionária onde a revolução cultural desempenhou papel crucial nesse processo no que tange a idéia de uma transformação revolucionária para o chamado terceiro mundo.

]O estruturalismo marxista de Immanuel Wallerstein encontra um novo caminho para se pensar as relações internacionais a partir da teoria que utiliza o conceito de sistema-mundo, onde o autor trata o sistema internacional como uma única estrutura integrada no sentido econômico e político,sob a lógica da acumulação e dominação capitalista.

Essa abordagem de Wallerstein está de acordo com a teoria marxista segundo explica Pecequilo:

“Para o marxismo, o sistema internacional é produto de fatores econômicos e um espaço ordenado segundo os interesses de classe, havendo o domínio da burguesia e sua imposição de normas e valores sobre o cenário e sua dinâmica.. Globalmente, assistimos à dominação desta burguesia e a opressão do proletariado, que se definem como agentes internacionais”.

Wallerstein passa a concentrar a sua explicação na forma como o sistema capitalista concentra capital e se organiza no tempo e espaço. A dimensão temporal ajuda a explicar como o sistema econômico e político evolui na história. As potências no início das grandes navegações eram as Ibéricas como Portugal e Espanha (séculos Xv e XVI), depois o predomínio transferiu-se para a Holanda no século XVII e XVIII e mais tarde para a Inglaterra nos séculos XIX e XX e Estados Unidos nos séculos XX e XXI.

Esses momentos de ascensão e queda das grandes potências coincidem com o ciclo de expansão e declínio econômico que estão relacionados a fatores como comércio, investimento, tecnologia e relações de poder. Isso significa que a dinâmica do capitalismo global ocupa um lugar privilegiado no que tange a explicação das oscilações na distribuição do poder no sistema internacional.

Ao longo desse processo histórico a organização desse sistema-mundo oscilou e estratificou-se dentro de uma lógica segundo a divisão internacional do trabalho e a concentração de capital nas diferentes esferas de acumulação ocorreu no centro, onde as atividades econômicas se desenvolveram de forma mais complexa e tecnologicamente sofisticadas. As atividades de subsistência ou de fornecimento de matérias-primas se concentraram na periferia onde o desenvolvimento político e social é mais precário.

As explicações de Wallerstein e de outros autores dessa corrente sugerem uma abordagem amarrada a vínculos de dependência externa principalmente ocasionados por razões econômicas e reforça que as desigualdades são em decorrência do processo de trocas desiguais entre os países do centro e da periferia.

Essa abordagem é de vital importância para a compreensão dos mecanismos que levam a análise das relações internacionais, assim como a questão do imperialismo e da luta de classes em um sentido mais amplo, mas ao mesmo tempo deixa um pouco a desejar no sentido de fornecer subsídios para explicar a autonomia dos Estados em instâncias como em situações relacionadas a segurança interna e externa.

II – A TEORIA CRÍTICA

A teoria crítica apresenta uma variação de idéias e propostas acerca da problemática das relações internacionais no sentido de apontar uma dura crítica ao marxismo considerado ortodoxo e formular questões que estejam mais adaptadas a realidade concreta do sistema internacional.

A Escola de Frankfurt apresenta discussões que estão presentes no cotidiano das sociedades de massa, como a cultura, valores e identidades dos grupos sociais inseridos em um modelo de consumo exacerbado e alienado. Mesmo sendo uma variante dos desdobramentos dos clássicos como Marx, Weber, os clássicos da ciência política e os filósofos consagrados a Escola de Frankfurt e sua diversidade de abordagens conseguiu implementar um modelo diferenciado para a análise das relações internacionais a partir de um enfoque mais crítico aos modelos tradicionais e conservadores do campo de investigação das relações internacionais.

Alguns pontos se destacam nessa abordagem:

• Ressaltamos a crítica ao conservadorismo das teorias dominantes, procurando formular uma teoria que enfatize a mudança no centro da análise.

• Análise do caráter de reprodução das relações de poder, assinalando as questões que envolvem a hegemonia das grandes potências e as assimetrias que perpassam as relações sociais de a concepção de Estado.

• A afirmação do caráter histórico da teoria social e das estruturas econômicas, políticas e culturais no sistema internacional.

• As teorias devem apresentar um caráter normativo e criticar um paradigma epistemológico tradicionalista baseado principalmente nas teorias positivistas, neo-realistas e neoliberais que consideram as teorias como apenas modelos que busquem a solução de problemas.

• A emancipação humana aparece no centro do debate das relações internacionais, entendendo o tema da exclusão e dos direitos humanos como foco central.

• A soberania estatal entra no debate e os aspectos relacionados a práticas de exclusão e dominação na política mundial entram na pauta de discussões.

As fronteiras que separam as comunidades no cenário internacional são definidas territorialmente através de um processo histórico de formação dos Estados Nacionais, mas os preceitos morais, étnicos, religiosos e culturais muitas vezes não são separados por fronteiras, mas sim, por interações históricas e concretamente determinadas pelas relações sociais de produção entre os homens ao longo dos séculos. Essa produção material e imaterial ou tangível e intangível reproduziu padrões de comportamento e ação entre os homens e as disputas, rivalidades e interesses foram se moldando ao longo do tempo e dos territórios. A intenção da abordagem antropológica, social e histórica é definir de que forma as comunidades se organizaram para criarem modelos de sociedades mais fechadas em termos territoriais.



Segundo Nogueira e Messari:

“Essas perguntas são importantes porque tocam em um ponto bastante complicado na teoria marxista: o de pensar a emancipação dos seres humanos no contexto de um mundo dividido não apenas em classes, mas também em nações. O ideal marxista é reconciliar o gênero humano, superando todas as divisões artificiais que impliquem exploração e submissão. A abolição da sociedade de classes era o eixo dessa utopia. Contudo, a emergência do nacionalismo e o fortalecimento do Estado territorial como unidade política confinou as utopias revolucionárias ao espaço restrito das sociedades nacionais, A noção de “marxismo em um só país” sepultou a vertente universalista e cosmopolita do pensamento socialista”.



Para alguns críticos das relações internacionais, a reprodução das estruturas políticas que dividem a sociedade tornou-se um ponto importante de reflexão, principalmente na atualidade, onde a agenda da segurança assume um lugar estratégico no processo de construção de padrões de conduta e políticas públicas domésticas e externas que focalizem ações que inibam práticas terroristas.

Talvez, o problema resida na barreira criada pelo Estado soberano em relação as demais civilizações, isto é, tornou-se cada vez mais complexo e difícil lidar com os conflitos e com a promoção da solidariedade entre comunidades diferentes em vários aspectos.

O paradoxo do processo conhecido como globalização emerge a medida que ocorre uma maior nitidez de percepção que o mundo está mais conectado no sentido econômico e financeiro, pelo menos para o fluxo de capital de países mais consolidados, mesmo os periféricos, e ao mesmo tempo os países demonstram uma maior hostilidade e salvaguarda em relação aos seus domínios.

O grande exemplo disso é a mobilidade de capital: o setor financeiro transfere recursos de capital com agilidade e com baixíssimo grau de intervenção enquanto a mobilidade de trabalho é pouco flexível e restrita a um seleto grupo de pessoas ou trabalhadores extremamente qualificados. O que está no centro do debate são os mecanismos de inclusão, cooperação e interdependência no sentido amplo. A questão formulada por alguns teóricos da Escola de Frankfurt é a que o projeto iluminista fracassou devido a preponderância da racionalidade instrumental sobre o projeto de progresso civilizatório.

Habermas, por exemplo, rejeita essa crítica, e afirma que as experiências humanas não estão restritas a racionalidade instrumental. Para ele a humanidade é capaz de aprender e se desenvolver, encontrando formas de se adaptar e construir novas bases de convívio e relacionamento humano. Ele considera que ao contrário de uma racionalidade instrumental o ser humano pode construir outra racionalidade chamada de prática-moral aplicada, onde o aprimoramento das relações sociais poderá construir instituições, normas de convívio e aceitação que visam diminuir as desigualdades e a violência em todos os sentidos.

Segundo essa teoria é preciso pensar quais as formas de organização político-social que possam relativizar o significado das fronteiras nacionais e introduzir mecanismos capazes de ampliar a democracia e a representação no plano internacional.

Para outro autor importante dessa corrente como Linklater, a experiência da União Européia representa o exemplo mais interessante e avançado de uma comunidade integrada na busca pela cidadania e pela representatividade sem fronteiras, ou pelo menos, com pequena submissão de um Estado soberano como necessidade extremada de controle e coesão social em nível doméstico e externo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As teorias apresentadas até agora demonstraram fôlego para manterem o debate aceso acerca de um macro tema, que são as relações internacionais. A teoria realista demonstrou a sua força a medida que balizou as ações dos Estados Unidos no terreno das intervenções militares principalmente retomadas a partir do governo George W. Bush em 2000, inaugurando o século XXI e o terceiro milênio da era cristã. Apesar de conservadora e até mesmo reacionária em alguns momentos, a teoria realista apresentou ao mundo uma visão de referência em um mundo em transformação.

O enfraquecimento da superpotência tornou-se quase que evidente, mas esconde algumas armadilhas, já que esse enfraquecimento pode lembrar o envelhecimento do sol, isto é, está frágil, porém, continua forte para manter a sua hegemonia ainda por um tempo. Agora é a hora de refletirmos sobre um mundo cada vez mais visível apesar das concentrações de renda, riqueza e poder, e o pensamento liberal apesar de legitimar ações particularistas promoveu um avanço no debate pela via da diplomacia e da conciliação nos moldes de um internacionalismo, que por vezes, colocou as demandas sociais internas à margem da discussões.

Isso já não ocorre com as teorias marxistas que pensam as relações internacionais a partir da luta de classes e do imperialismo e promovem uma dissolução desse sistema, sem, ao mesmo tempo provocar reações de ataque aos demais Estados, por entender que a luta é contra o sistema não contra os países.

Os teóricos críticos abraçam o caminho da democratização e ampliação dos espaços territoriais a partir de mecanismos de integração e cooperação como é o caso da União Européia, apesar de interesses escusos que privilegiam certamente o poder das classes dominantes sem fronteiras.

Cabe avançarmos ainda mais no que diz respeito a construção de teorias que iluminem o campo das investigações sobre a geopolítica mundial, a política internacional ou mesmo as relações internacionais.

Essa abordagem realizada até o momento apenas obedece a uma definição sintética acerca de como as teorias observam os caminhos percorridos pela sociedade a partir de uma perspectiva de atuação dos seus Estados ou países.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

PECEQUILO, Cristina Soreanu. Introdução às relações internacionais: temas, atores e visões. Petrópolis – RJ: Vozes, 2004.

COSTA, Edmilson. A Globalização e o capitalismo contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

O TRABALHO COMO VALOR HUMANO E A ALIENAÇÃO E A PRECARIZAÇÃO COMO PARADOXO

Contar com o pagamento do trabalho nem sempre pode ser considerado como algo intrínseco as relações de reciprocidade humana no que tange ao processo de trocas no sistema econômico, aliás, o sistema conhecido como de mercado começa a ser preponderante a partir da Revolução Industrial de meados do século XVIII aproximadamente.

Antes dessa fase de ascensão do modo de produção capitalista e mesmo durante o desembocar de um novo paradigma cultural, social, político e econômico que inicia sua trajetória a partir das revoluções burguesas, muitas comunidades mantinham relações ou vínculos norteados pela valorização do trabalho no sentido do prazer e da aprovação social.

O ganho pela realização do trabalho passa a se tornar corrente nas comunidades mais civilizadas. Vale lembrar, que a principal potência econômica da Revolução Industrial – a Inglaterra – apenas consegue obter a maioria da população vivendo nas cidades a partir de meados do século XIX, isto é, praticamente já na Segunda Revolução Industrial.

Não encontramos o trabalho associado a idéia do pagamento em qualquer local de uma sociedade primitiva ou outras comunidades que não tenham sofrido grandes influências principalmente da civilização ocidental. O tratamento do trabalho como obrigação, aquele que exige compensação ou pagamento passa a ser reconhecido como legítimo com o dinamismo das relações de troca impulsionadas pelo modo de produção capitalista. Mesmo o estranho diante de determinada comunidade trabalha pela honra e pelo reconhecimento e aqueles que aceitavam pagamento eram considerados menestréis sem percepção e compromisso com as questões que envolvem a honra, e, eram desprezados por essa atitude.

A utopia do mercado do mundo moderno transformou todas as forças produtivas em mercadoria para a troca e ideologicamente construiu uma imagem a-crítica e a-histórica sobre o desenvolvimento dos mecanismos de integração social via a lapidação do trabalho no sentido antropológico-cultural. A retórica do mercado como modelo padrão explicativo para a formação das sociedades desde há muito tempo não encontra veracidade se levarmos em conta as pesquisas relacionadas a antropologia social, economia primitiva, história econômica e a própria economia política segundo estudos sérios sobre o tema.



Segundo Polanyi:



“Os incentivos habituais do trabalho não são o ganho mas a reciprocidade, a competição, o prazer do trabalho e a aprovação social.



Reciprocidade: “A maioria, senão todos os atos econômicos pertencem a alguma cadeia de presentes e contrapresentes recíprocos que, a longo prazo, chegam a um equilíbrio e beneficiam igualmente todos os lados... O homem que desobedecesse persistentemente às regras da lei nas suas transações econômicas logo se veria à margem da ordem social e econômica – e ele está perfeitamente consciente disso” (Malinowski, Crime and Custom in Savage Society, 1926, PP. 40-41).



Competição: “A competição é acirrada, a execução, embora uniforme no seu objetivo, é variada por excelência... Uma disputa na excelência da reprodução dos padrões” (Goldenweiser, “Loose Ends of Theory on the Individual, Pattern, and Involution in Primitive Society”, em Essays in Antropology, 1936, p. 99). “Os homens se rivalizam uns com os outros na velocidade, na eficiência e nos pesos que podem levantar quando trazem grandes estacas para o jardim ou quando transportam os inhames colhidos” (Malinowski, Argonauts, p. 61).



Prazer do trabalho: “O trabalho por ele mesmo é uma característica constante da indústria Maori” (Firth, “Some Features of Primitive Industry”, E. J., vol. I, p. 17). “Dedica-se muito tempo e trabalho para fins estáticos, para arrumar, limpar e retirar todo o entulho dos jardim para construir cercas refinadas e sólidas, para conseguir estacas de inhame grandes e fortes. È claro que todas essas coisas são importantes para o crescimento da planta, mas não há dúvida também de que os nativos levam sua escrupolosidade além dos limites do puramente necessário” ( Malinowski, op. Cit., p. 59).



Aprovação social: “A perfeição na jardinagem é o índice geral do valor social da pessoa” (Malinowski, Coral Gardens and Their Magic, vol. II, 1935, p. 124). “Espera-se que cada pessoa da comunidade mostre uma medida normal de aplicação” (Firth, Primitive Polynesian Economy, 1939, p. 161). “Os ilhéus Andaman vêem a preguiça como um comportamento anti-social” (Ratcliffe-Brown, The Andaman Islanders). “Colocar o trabalho de alguém sob o comando de outro é um serviço social e não apenas um serviço econômico” (Firth, op. Cit., p. 303).



Portanto, o trabalho como componente ou gerador de valor para a acumulação do capital passa a ser compreendido dessa forma a partir das grandes transformações ocorridas no modo de produção capitalista desde o final do século XVIII. De qualquer forma houve resistência das comunidades tradicionais em participar e querer compreender as relações de troca como comércio e a própria divisão do trabalho que não fossem sem favor dos componentes que envolvem reciprocidade e o prazer do trabalho, além é claro, da sobrevivência da comunidade.

A partir desse ponto de imbricação podemos abordar os aspectos que conduziram as modificações no mundo do trabalho na sociedade moderna na atualidade. As questões que constroem uma nova configuração do trabalho, as desregulamentações e a intensificação das especialidades inseridas no contexto de uma nova divisão social e internacional do trabalho precisam ser compreendidas no bojo do sistema capitalista contemporâneo.

O paradigma do Welfare State (Estado de Bem Estar Social) trouxe a luz uma necessidade de construir um pacto social e trabalhista que propusesse novas condições de regulamentação e seguridade no modelo fordista da fábrica. O modelo liberal anterior do final do século XIX baseado no taylorismo-fordismo necessitava ser revisto em termos de ordenamento e organização produtiva. O modelo da grande indústria moderna respirou por mais tempo devido a Era de Ouro do pós-segunda guerra e exauriu suas forças já no final da década de 1960. Essa transição que inicia sua trajetória através da ruptura de um modelo fordista esgotado já nos anos de 1970 abre espaços para o que podemos denominar de morfologia do trabalho.

A terceira revolução em curso capitaneada pela telemática (moldes baseados na microeletrônica) impõe condições no sentido da reorganização da produção (engenharia, qualidade, flexibilidade e adequação a normas) em vista de um paradigma alternativo chamado por muitos de toyotismo.



A TRANSFORMAÇÃO NO MUNDO DO TRABALHO



O paradigma fordista tornou-se o paradigma da industrialização durante quase todo o século XX, e sustentou um modelo de produção capitalista baseado em premissas fundamentais como a racionalização das tarefas, de modo a diminuir os gastos com o tempo, o parcelamento das tarefas, segundo as recomendações tayloristas; a conexão entre as funções dos diversos operários, a padronização das peças a fim de possibilitar uma melhor adaptação que se moldasse ao processo de verticalização da empresa.

O domínio do processo de trabalho alcançado pelo fordismo permitiu ao capital a intensificação da exploração da força de trabalho. A parcelização possibilitou o adestramento da habilidade de cada operário, de modo a diminuir o tempo morto de cada atividade e a aumentar a intensidade do trabalho.

Essa intensidade do trabalho, da concentração do capital e da reconfiguração das classes sociais e do próprio estilo de vida conduziu a uma espécie de privatização das relações sociais e do modo de vida das pessoas, em particular do operário.

As conseqüências dessa reconfiguração contribuiu para flexibilizar as relações de trabalho comparadas ao modelo fordista antes da segunda guerra mundial e enfraqueceu os laços de solidariedade entre os membros da classe trabalhadora. Ao mesmo tempo em que esse operário é atomizado pela produção parcelada e desqualificada, também o é pelo consumo mercantil, possível somente individualizado.

Ao contrário dos trabalhadores da atualidade, em que o processo ideológico já está infiltrado nas entranhas das relações afetivas, familiares e sociais como parte constituinte do padrão de convivência, comportamento e atitude frente a fruição do fetichismo; os trabalhadores do início do fordismo passaram pelo processo de aculturação devido ao fato de serem em sua grande maioria estrangeiros e pertencentes a um estilo de vida ainda ruralizado por serem homens e mulheres oriundos do campo.

O enfraquecimento do regime de acumulação fordista também ocorreu devido a situações de ordem cultural, mas evidentemente não apenas essa. Alguns pontos merecem ser destacados no que se refere ao esgotamento do padrão fordista de produção e acumulação:



a) Dentre as situações culturais destacáveis se enquadra a saturação das normas sociais do consumo devido a padronização excessiva dos produtos em grande quantidade;

b) Diminuição dos ganhos de produtividade, devido aos limites técnicos e sociais dos métodos fordistas e tayloristas de produção e trabalho;

c) Elevação da composição orgânica do capital recaindo sobre a queda na taxa de lucro em virtude do aumento do capital constante em oposição a diminuição do capital variável.



Com o advento do toyotismo ou padrão de acumulação flexível o modo de produção capitalista passa por um processo de reestruturação produtiva a partir das revoluções tecnológicas em curso, além da reconfiguração da divisão social do trabalho nos moldes da reengenharia, qualidade total, controle racionalizado dos estoques, e, diretamente ligado ao trabalho temos a produção flexível realizada nas células de produção.

A mudança substancial na concepção e na organização do trabalho tornou-se visível a partir do final da década de 1970 nos países desenvolvidos e no Brasil praticamente uma década depois com maior percepção geral. As mudanças tecnológicas e o aumento da capacidade produtiva não conseguiram colocar o trabalhador em uma situação mais confortável no que tange a uma melhor acomodação no trabalho com menores desgastes as engrenagens humanas.

As graves conseqüências sociais da nova configuração capitalista estão relacionadas com a precarização do trabalho de parcelas cada vez maiores da população. O aumento da jornada de trabalho, as desregulamentações das leis trabalhistas e dos contratos de trabalho são alguns dos pontos de destaque em relação ao processo de precarização do trabalho no mundo contemporâneo, principalmente após os anos de 1970.

Marx já apontava para a tendência da intensificação do processo de precarização à medida que crescia o contingente de pessoas dispostas a aceitar condições de trabalho inferiorizadas em troca da empregabilidade, mesmo em tempos de ausência de leis trabalhistas, já que a necessidade de sobrevivência empurrava o trabalhador no sentido da venda da sua força de trabalho em troca de remuneração que mal supria as necessidades de subsistência.

Nas análises de Ricardo Antunes a precarização do trabalho aparece como um dos aspectos determinantes da fragmentação do proletariado, na tentativa de esvaziamento e enfraquecimento da luta de classes ensejada pelo capital.

Existem basicamente três modalidades ou grupos de trabalhadores que atuam no mercado:



a) Os estáveis, com garantias de emprego, salário e benefícios sociais garantidos pela lei;

b) Aqueles que trabalham com contratos temporários, que estão em situações instáveis e de subcontratação;

c) E aqueles grupos de trabalhadores que estão excluídos parcialmente ou fora até do mercado de trabalho, sobrevivendo apenas através de benefícios oferecidos pela seguridade social.



O processo de precarização do trabalho não se aplica de forma homogênea a todos os setores da classe trabalhadora. No caso das mulheres a sua incorporação no mundo do trabalho se deu de forma desigual e precarizada com maior intensidade. As mulheres, negros e estrangeiros são alocados e realocados dependendo da situação em funções bastante desgastantes do ponto de vista físico,além da precariedade dos contratos de trabalho, isso quando eles existem.

No caso brasileiro, em particular, ocorrem situações bastante deploráveis em termos insalubres e de cárcere privado com crianças, trabalhadores nortistas e nordestinos em maior número.



Segundo Antunes:

Na divisão sexual do trabalho, operada pelo capital dentro do espaço fabril, geralmente as atividades de concepção ou aquelas baseadas em capital intensivo são preenchidas pelo trabalho masculino, enquanto aquelas dotadas de menor qualificação, mais elementares e muitas vezes fundadas em trabalho intensivo, são destinadas às mulheres trabalhadoras (e muito freqüentemente também aos trabalhadores/ as imigrantes e negros/ as).





Como acontece com todos os outros aspectos da produção, o processo de precarização do trabalho inscreve-se na necessidade de flexibilização e desregulamentação do padrão de produção e das relações de trabalho.

O trabalho tende a ser explorado e requisitado a partir de uma dinâmica de acumulação que racionaliza as relações de trabalho no seu ponto máximo, isto é, a contratação e dispensa de trabalhadores não passa pelas relações de honra, prazer e troca nos moldes das comunidades que não atuam sobre a lógica do mercado.

Portanto, a única possibilidade de transformação do mundo é através das relações de trabalho, de qualquer natureza e não a família como muitos acreditam. São as questões dialéticas, de contradição, da disputa e da luta por espaços de reivindicação política, social, econômica e cultural que irão impulsionar a sociedade. A família representa o núcleo mais conservador, reacionário e atomizado e reproduz a alienação e a sujeição da estrutura capitalista.

Procurar recorrer a organização social e política no sentido da busca da liberdade e da igualdade como um processo recíproco de interação entre os sujeitos não entre as mercadorias, talvez seja o primeiro passo.


REFERÊNCIAS:

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000,

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo,1999.

Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS EM XEQUE: UMA NECESSIDADE DE ANÁLISE CRÍTICA

A economia política internacional em síntese

As teorias que envolvem as relações internacionais têm avançado muito desde o divisor de águas marcado pelo término da segunda guerra mundial. Mesmo as teorias mais conservadoras como o Realismo e o Liberalismo com suas variantes tem se adaptado as mudanças no contexto da guerra fria, assim como as outras teorias concorrentes como a teoria crítica e a teoria marxista.

Apesar da guerra fria ampliar seu debate político-ideológico após o conflito armado da segunda guerra mundial, esse contexto começa a se moldar a partir da efervescência da primeira guerra mundial e principalmente da Revolução Russa de 1917. O conflito bélico entre as nações e a guerra civil russa possibilitou a ascensão de uma nova ordem mundial antagônica ocidental e oriental.

Segundo Noam Chomsky a guerra fria inicia sua trajetória de disputa entre os valores, culturas, política, economia e sociedade entre o ocidente capitalista e a órbita do leste europeu capitaneada pela ex União Soviética a partir de 1917-24 (período que se instala o Estado socialista).

As relações internacionais baseadas nos estudos do idealismo avançam para as análises críticas do realismo e o liberalismo a partir desse período de disputas entre as nações e rupturas econômicas cruciais, como a crise de 1929. O vazio de lideranças entre o primeiro e o segundo conflito bélico mundial no plano político e econômico precipitou a segunda grande guerra e exacerbou o antagonismo entre as civilizações ocidental e oriental.

O morticínio das minorias étnicas, as perdas humanas da guerra, o choque das bombas atômicas e a destruição da Europa fez surgir uma necessidade de reconstrução da estrutura física e da organização do sistema econômico e político nos moldes da democracia liberal burguesa capitaneada pelos Estados Unidos e pela economia planificada capitaneada pela então União Soviética que agudizava a disputa em um paradigma mais elevado da guerra fria.

A construção do Welfare State (Estado de Bem Estar Social) principalmente na Europa e o modelo de socialismo planificado pelo Estado nos países pertencentes a órbita soviética ascenderam as disputas pela liderança de valores e de civilização em nível mundial. Essas disputas fazem com que, as teorias crítica e marxista das relações internacionais ampliem seu terreno no debate intelectual do século XX.

O acordo de Bretton Woods que definiu o padrão monetário internacional comandado pelo lastro ouro-dólar e as políticas pactuais entre trabalhadores e empresas a partir de meados do século XX revigoraram o sistema capitalista de base taylorista-fordista e permitiram o avanço da chamada “Era de Ouro” do capitalismo. Do outro lado, o socialismo real apresentava forte crescimento econômico e investimentos em setores de tecnologia bélica e espacial.

O sistema econômico internacional capitalista e a economia soviética planificada concentram as disputas enquanto no plano político as guerras das Coréias do Norte e do Sul, do Vietnã, os golpes militares e as lutas pela independência cruzam as fronteiras da África e da Ásia sempre orbitando entre os eixos de influência soviéticos e estadunidenses.

As disputas entre árabes e judeus no Oriente Médio e a ascensão da China como uma nação de peso no sistema geopolítico internacional ultrapassam as fronteiras da instabilidade econômica dos anos de 1970 com o rompimento de Bretton Woods, as crises do petróleo arquitetadas pelo cartel da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) e a crise da dívida pública dos países latino-americanos completam o quadro de transição de uma nova ordem mundial sobre os auspícios de um novo paradigma em formação, baseado em um tripé, em que pesa o comando da globalização, do neoliberalismo e da revolução tecnológica capitaneada pela microeletrônica.

As zonas de influência política e econômica a partir dos anos de 1980 começam a incorporar novos atores quanto a partilha do poder. Os Estados Unidos reinaram durante a chamada “Era de Ouro” do capitalismo (expressão cunhada pelo historiador egípcio-britânico Eric Hobsbawn), quer dizer, durante praticamente um quarto de século, entre 1945-70, onde os estadunidenses detinham mais da metade do PIB mundial; mas a partir do desmantelamento do sistema monetário internacional do lastro ouro-dólar países como a Alemanha e Japão juntam-se a superpotência para formar a tríade; expressão que significa que a partir de então existem três grandes economias mundiais: Estados Unidos, Japão e Alemanha com suas respectivas moedas fortes e graus de influência.

A crise da dívida pública combinada com altíssimos índices inflacionários explode nos anos de 1980 nos países latino-americanos concomitantemente ao ressurgimento da guerra fria como espetáculo a partir do governo Reagan, assim como sucessivos golpes de Estado comandados pelo Pentágono contra os governos democraticamente eleitos da América Central. Os anos de chumbo de 1960 e 1970 pertenciam aos países da América do Sul, principalmente Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile e a partir de 1980 o foco se move na direção dos países da América Central como Guatemala, Nicarágua e El Salvador.

A guerra nas estrelas patrocinada por Reagan, principalmente no seu primeiro mandato (1980-84) perde fôlego no segundo, já que Mikail Gorbachev inicia um período de abertura denominada de Perestroika. A aproximação entre as duas superpotências conduz a um movimento de rompimento com o antigo regime socialista. Antigo, devido ao enfraquecimento previsível da superpotência político-militar e da sua legitimidade em termos sociais, culturais e econômicos.

O esfacelamento do regime político; sua identidade e legitimidade são pulverizados com a simbólica queda do muro de Berlim no início de novembro de 1989 e colocados à prova quando as demais nações do leste europeu rompem gradativamente com o poder central de Moscou. Mesmo a União Soviética, sucumbe à pressão e desmonta seu estado socialista em 1991; ano em que a guerra do Iraque deixou mortos e um recado a um antigo adversário: a partir desse momento a civilização ocidental, capitaneada pelos Estados Unidos reagrupa suas forças em torno da órbita do G7 (grupo dos sete países mais ricos do mundo) somado agora com a Rússia – G8 e proclama a economia de mercado e a democracia liberal burguesa como as formas mais avançadas e adequadas de compartilhar os valores econômicos, políticos, culturais e sociais de um sistema de sociedade.

Esse então, pode ser considerado o momento de um novo divisor de águas; e segundo a visão pragmática e conservadora como o “Fim da História” (expressão cunhada pelo cientista político estadunidense Francis Fukuyama) revelado em uma imagem de visível derrocada do sistema soviético após a queda do regime. A terceira revolução tecnológica da Era da Informação e a imposição do consenso de Washington a partir do capitalismo sem fronteiras do novo liberal (lassez fare - lassez passe) colocaram os Estados Unidos em uma posição privilegiada no estratagema geopolítico mundial; mas essa nova ordem mundial em ascensão não havia ainda revelado as facetas subjacentes do sistema econômico e político mundial.

A derrocada do socialismo real europeu fez acender o alerta chinês. Desse alerta surge a necessidade da China de mergulhar em uma economia capitalista dirigida pelo Estado, mas não aos moldes soviéticos. A economia de mercado aliada a um sistema repressor centralizado pelo partido comunista colocou a China na rota dos países emergentes juntamente com o Brasil, Índia e Rússia logo depois do 11 de setembro estadunidense. Esses emergentes não estão no mesmo patamar, já que a relativa estabilidade brasileira, tomado como exemplo, está alicerçado sob uma economia política de raiz continuísta, apesar do avanço de algumas políticas sociais

A economia estadunidense se mantém através de um keynesianismo baseado na estratégia do sistema do Pentágono e da NASA com muito gasto público nas áreas de pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de ponta e aquece o consumo interno através de gigantescos endividamentos público e privados, em grande parte graças a China que adquire títulos dos Estados Unidos, além de exportar produtos em grande quantidade para esse país.

A nova ordem mundial capitaneada novamente pelos Estados Unidos inicia seu ciclo de expansão a partir dos anos de 1990 (em particular os anos Clynton) e abre o século XXI de Bush filho deflagrando uma guerra contra o “terror” (expressão proposital para designar grupos de terrorismo. Leia-se: e países considerados inimigos ou ameaças a ordem geopolítica mundial), em um mundo que a bolha especulativa estourou, os atores adjacentes se fortaleceram e os Estados Unidos não teve como impedir a formação de um mundo cada vez mais compartilhado em termos de interesses e ao mesmo tempo disputas em uma nova e ao mesmo tempo velha ordem mundial.


Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino

DIREITO E JUSTIÇA NO BRASIL E NOS ESTADOS UNIDOS: DIFERENÇAS E ATITUDES DE CLASSE HEGEMÔNICAS

A influência do poder americano no mundo não causa espanto nem tão pouca estranheza, mesmo para aqueles que muitas vezes estão à margem do convívio social no que tange as discussões da práxis política global e sua inserção no debate ideológico. Mas o impacto da american way of life principalmente nas sociedades industriais avançadas teve uma maior repercussão nos países satélites onde a órbita de influência atingiu as estruturas culturais, sociais, políticas e econômicas de forma mais avassaladora.

A semelhança do Brasil com os Estados Unidos passa por modelos de ordem política e econômica, mas não de natureza democrática quando inserimos noções de participação política e cidadania principalmente em relação aos aspectos vinculados aos direitos do homem. Nos Estados Unidos o debate sobre as questões que envolvem a justiça, as leis e o direito na sua amplitude são compartilhados pelos agentes sociais de forma articulada e recíproca, isto é, a noção de direito remete a discussão da manutenção do ordenamento social amplo onde todos reconhecem que o cumprimento de determinadas normas e regras é fundamental na manutenção da democracia e da negociação dos conflitos na esfera pública.

A cultura americana reconhece que o ordenamento jurídico prevê a necessidade de buscar soluções dos conflitos no espaço do direito não apenas como instituição mediadora e sentenciadora, mas como guardiã dos princípios éticos e morais que cercam os valores da cultura democrática internalizados pelos cidadãos das mais diferentes classes sociais, num jogo compartilhado por todos, que reconhecidamente entendem e aceitam as regras, independente das condições de desigualdade entre os homens.

A noção fundamental de que o descumprimento das regras e normas dessa sociedade são uma afronta a democracia e a estabilidade e/ou equilíbrio entre governo e sociedade é uma característica importante da necessidade de preservação desses princípios como forma de salvaguardar a coesão social. A ruptura do contrato social é, portanto, um componente crucial de identificação de transgressões sociais que não são aceitas pela sociedade americana, mesmo por aqueles indivíduos reconhecidamente pertencentes às minorias sociais.

O respeito às regras socialmente estabelecidas é entendido como a extensão dos direitos aos outros indivíduos não apenas ao cumprimento da lei confeccionada por um Estado ou Governo através das instituições democráticas formais representadas pelo parlamento, executivo e judiciário. O entendimento de que a convivência com outros indivíduos é primordial na extensão das liberdades e da coesão social é a chave da manutenção da democracia em um âmbito maior.

Os americanos se comprometem a conviver com outros cidadãos ou agrupamentos sociais e a negociar as disputas individuais ou coletivas em espaços reconhecidamente públicos, entendendo que o espaço social é o lócus das disputas judiciais e da democracia

Segundo Lima :

O espaço público – em inglês, public – aparece assim como um espaço coletivo negociado pelo público que dele faz parte, que pertence ao local e que se compromete a conviver com as diferenças “normais” – quer dizer, aquelas que foram explicitamente discutidas e aceitas – num sistema de segregação dos iguais, mas diferentes, que procura, assim, prevenir explicitamente o conflito latente entre indivíduos únicos com interesses divergentes. A imagem com que essa sociedade prefere se representar é aquela de um paralelepípedo, em que a base é igual ao topo e todos, separadamente, têm direito à mesma trajetória, desigualmente trilhada por cada um dadas suas próprias condições de habilitação e capacitação. Como diz Roberto DaMatta (1979), todos separados, mas juntos.

No caso do Brasil os cidadãos não disputam seus interesses e divergências na esfera pública, já que esse terreno democrático e de aprimoramento da cidadania e da sociedade foi sempre demarcado por disputas de elites políticas e econômicas onde o lugar dos bacharéis e sua ideologia impuseram conceitos de justiça e harmonia social a partir de uma retórica pertencente a um campo (conceito conforme a utilização de Bourdieu) e não baseado em argumentações representadas pelos interesses em disputa.

As argumentações e as disputas não foram ampliadas ao espaço público, já que esse espaço sempre foi tomado pelo Estado representado pelas classes dirigentes que historicamente cercaram o território físico e geográfico e impuseram as suas vontades a esmagadora maioria da população. Os detentores dos poderes políticos e econômicos proporcionaram a eles mesmos o direito e o privilégio de acesso a tomada de decisão da coisa pública e a vida individual e coletiva dos próprios indivíduos que pertenciam ao espaço público; mas, esses indivíduos dominados pelo aparelho de Estado concentrado nas mãos da elite ainda em construção não tinham noção de identidade e pertencimento.

O acesso ao conhecimento e conseqüentemente as leis fez do conceito de direito, lei e justiça uma questão de defesa de teses normativas, ignorando as peculiaridades das disputas especificamente locais. O espaço público foi de maneira geral se submetendo as leis do Estado soberano sem prever as necessidades e as especificidades dos embates locais e multifacetados.

Por outro lado e de forma genérica algumas coincidências se posicionaram de maneira cada vez mais próxima no que se refere às práticas dos governos nesse último quarto de século passado. As formas violentas de tratamento das populações (leia-se minorias) nesses dois países; um considerado desenvolvido e quase hegemônico e o outro atrasado e subserviente.

Mas, quando falamos em Estados Unidos não podemos deixar de ressaltar que apesar dos avanços dessa sociedade, algumas formas de depreciação social ocorreram principalmente no final dos anos sessenta para o início dos setenta devido a várias contingências de ordem social, histórica e econômica que colocam esse país desenvolvido como parâmetro de violência institucional e que serve de modelo para entendermos como a exclusão social se manifesta mesmo em países desenvolvidos.

A expansão dos direitos humanos nos anos sessenta, a guerra ou terrorismo de Estado praticado contra os países asiáticos que orbitavam em torno das disputas no Vietnã como o Camboja e a Indochina e a revolução-contestação cultural característica do final dos anos sessenta servem de sinal ao país imperial hegemônico que era necessário controlar a “democracia” paradoxalmente internalizada como um valor estadunidense.

A violência praticada contra a cidadania ressalta-se através das políticas públicas praticadas principalmente a partir do governo de Richard Nixon, isto é, quase que concomitantemente a fase mais aguda da guerra do Vietnã, onde o encarceramento aparece como política contra a violência. A partir de então se inicia outra guerra; a guerra contra os próprios cidadãos, principalmente as minorias étnicas e sociais, isto é, uma guerra ou conflito interno.

De acordo com Wacquant :

O segundo motor da inflação carcerária americana é a mutação dos usos político-midiáticos da criminalidade como reação aos movimentos de contestação dos anos 60. Para sufocar os tumultos populares provocados pela guerra do Vietnã e pela mobilização dos negros em favor da igualdade civil, os políticos conservadores, republicanos e democratas vão aperceber-se do “problema", e fazer da “luta contra o crime” seu principal contra-ataque à expansão (modesta) do Estado social, necessária para suprimir a pobreza e a desigualdade racial (BUTTON, 1978, P. 163-166)
A construção de penitenciárias caminha no mesmo sentido da política de prisões e de fechamento de estabelecimentos exclusivos para jovens infratores. A violência e o nível de terrorismo de Estado e agressão a outras nações que não compartilham com os Estados Unidos a sua ideologia e suas parcerias comerciais fazem ascender à agitação e os protestos contra a nação estadunidense, e esse processo intensifica-se à medida que a legitimidade do imperialismo esvazia-se e também porque esse país é reconhecidamente interpretado como comandante da dominação global e causador de inúmeros sofrimentos que são percebidos cada vez mais pelas populações espalhadas pelo mundo.

Com a derrocada do socialismo real capitaneado pela ex-União Soviética e a ascensão do neoliberalismo alicerçado pela terceira revolução industrial da era da informatização as contradições se dinamizam e ampliam no setor externo e a luta de classes torna-se mais visível no plano interno.

Segundo Chomsky:

O planejamento militar está pensado tendo em vista essa possibilidade, bastante explicitamente. Existe uma analogia doméstica, é provável que essa visão toque no ponto nevrálgico do brusco incremento da criminalidade. O aumento dos encarceramentos ocorrido ao longo de todo o período neoliberal teve como centro os grupos que na América Latina são às vezes chamados de “descartáveis” ou são alvos da “limpeza social”. Os Estados Unidos são mais civilizados em lugar de assassinarem-nos, colocam-nos na cadeia e isto ocorre sincronizadamente com o período neoliberal. Clinton aumentou os números de encarcerados mais ou menos de 50%. Bem, tudo isso nos conduz ao primeiro dilema: como controlar a população que está suportando os custos e os riscos?
Assim como no plano externo, a política de justiça e cidadania nos Estados Unidos funciona como uma indústria. As políticas públicas de combate a violência são sinônimos de investimentos de infra-estrutura como prédios e tecnologia da vigilância e detenção, e por outro lado, diminuição de recursos em educação e assistência a famílias carentes.

A política de encarceramento dos Estados Unidos não está somente ligada ao imperialismo, mas também a cultura da sociedade estadunidense, que de forma conservadora distingue a priori dois tipos de cidadãos: os cidadãos honestos (the innocent) e a gente má (the wicked).

Apesar dos Estados Unidos disseminarem pelo mundo a imagem de um país democrático e que propicia a integração étnica com igualdade de oportunidades, os indicadores sociais apontam para um aumento considerável na desigualdade social principalmente a partir do final da guerra do Iraque, onde as contestações no plano interno estão mais evidentes, já que a luta dos negros, os grupos de pressão pelo não envolvimento dos Estados Unidos em aventuras beligerantes e o próprio acirramento da luta de classes cresceu enormemente.

A violência contra os grupos minoritários aparece como uma resposta ou contra-ataque da elite em favor da supressão do crescente processo de reivindicação do estado social. Neste ponto, tanto os republicanos quanto os democratas concordam que é importante combater o crime no sentido de tranqüilizar as classes privilegiadas, ameaçadas por uma horda de negros desocupados e demais grupos que atentam contra a democracia do “apartheid” social.

As prioridades nacionais nos Estados Unidos refletem a necessidade de dominação e a legitimação do imperialismo. Tanto a política externa quanto a interna estão pautadas pelo excesso de força e intolerância contra os povos e os grupos minoritários dentro e fora dos Estados Unidos. Mas essa política está relacionada com a chamada contenção à democracia e não se trata apenas de um repúdio as minorias sociais, mas sim, a pressão contra os movimentos libertários e democráticos.

Os meios de comunicação contribuem na legitimação das políticas de diminuição de gastos sociais velados e aumento de políticos de fomento ao keynesianismo militar, encarceramento privatizado e outras de privilégio comercial e mercadológico através da propagação da ideologia do medo do terrorismo, das drogas e também do inimigo bélico externo; assim ocorreu na guerra fria e agora contra os denominados integrantes do “eixo do mal”.

Mas é justamente o oposto; o terrorismo de Estado e a agressão são patrocinados e promovidos pelo estado armamentista imperial estadunidense e seus parceiros pulverizados na Europa, Ásia, entre outros espaços geográficos.

Os Estados Unidos representam o quanto às políticas de Estado de qualquer nação violentam seus cidadãos quando não são construídas pela sociedade civil, mas sim, impostas de cima pra baixo, pela mão de ferro de seus governantes, que tem por finalidade atingir objetivos escusos e tendem a ser indiferentes aos interesses da cidadania; isso, quando não a sabotam.

REFERÊNCIAS:

BORON, Atílio A, Org. Nova hegemonia mundial: alternativas de mudança e movimentos sociais. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales, 2004.

WACQUANT, Loïc. Crime e castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton. Curitiba: artigo publicado à Revista de Sociologia e Política número 13, 1999.

LIMA, Roberto Kant. Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Curitiba: artigo publicado à Revista de Sociologia e Política número 13, 1999.


Autor: Marcelo Gonçalves Marcelino